O vocábulo inglês enshittification, escolhido como Palavra do Ano de 2024 pelo Macquarie Dictionary, elaborado na Austrália, descreve o processo de degradação de serviços e produtos, especialmente os digitais, à medida que se priorizam estratégias voltadas para o lucro em detrimento da experiência do utilizador. Criado em 2022 pelo escritor e ativista Cory Doctorow, o termo, que deriva do calão shit, «merda», rapidamente se espalhou, especialmente como uma crítica a plataformas digitais que, ao longo do tempo, se afastam das necessidades dos utilizadores e começam a adotar práticas predatórias, como a inserção excessiva de anúncios e conteúdos patrocinados.
O fenómeno descrito por Doctorow foi amplamente discutido em 2023, quando os jornalistas começaram a usar a palavra para se referir a plataformas que alteraram as políticas para promover a monetização, como o X (antigo Twitter) e outras redes sociais e plataformas de comércio eletrónico, como o TikTok e a Amazon. Estas mudanças prejudicaram a experiência do utilizador e têm gerado um ciclo de insatisfação crescente, levando as plataformas ao que o próprio escritor descreve como um «declínio definitivo» no que se refere à qualidade e funcionalidade.
No entanto, o que se destaca nesse debate é a questão da transposição desse conceito para outros idiomas, em especial para o português. Quando pensamos numa tradução para enshittification, surge a pergunta: será possível encontrar, na língua portuguesa, um termo que capture com precisão esse fenómeno?
Uma tentativa de tradução poderia ser a expressão «degradação das plataformas em linha», que transmite a ideia de um processo progressivo de deterioração, mas faltam-lhe o poder de síntese e o tom de crítica social associados a enshittification. Outra opção seria o aportuguesamento neológico "enshitificação", que pode levantar problemas, porque só derivados de nomes próprios que podem manter a grafia estrangeira no radical (veja-se o n.º 3 da Base I do Acordo Ortográfico de 1990), ou, como sugere o tradutor Jorge Davidson, "embostificação" ("Enshittification: ou como nos acostumamos à degradação das plataformas online", LinkedIN, 25/01/2024). Este último termo pressupõe o verbo "embostificar", um derivado por sufixação do radical bost- de bosta, «excremento de vaca, porcaria», que, embora não se encontre dicionarizado, se infere ter o significado de «tornar algo ruim, de baixa qualidade ou desprezível» e é morfológica e semanticamente homólogo do inglês enshittification. Uma última opção, que se encontra no Portal Verdade é merdificação, que deriva de merdificar, ou seja, «tornar o produto uma merda».
Importa salientar que no contexto hispânico, o termo enmierdificación foi adotado como equivalente ao termo inglês original – indo, portanto, ao encontro de merdificação. Essa tradução direta, num registo grosseiro, não é simples adaptação linguística, mas também capta a carga de insatisfação e crítica da palavra anglo-saxónica. A adoção de enmierdificación no mundo hispânico foi acompanhada por uma reação crescente, principalmente em 2023, quando diversos jornalistas passaram a usá-lo para descrever a degradação de plataformas como a Google (ver Wikipédia em espanhol).
É claro, portanto, que a questão da tradução do conceito de enshittification não se resume apenas à procura de um termo equivalente, mas também envolve uma reflexão sobre como o fenómeno é percebido culturalmente e como ele impacta a relação dos utilizadores com as plataformas digitais. A escolha de um neologismo, seja "embostificar" ou qualquer outro, dependerá não só da adaptação linguística, mas também da capacidade de capturar as subtilezas críticas que o termo traz consigo.