« (...) O carácter injurioso de determinada palavra ou expressão está fortemente dependente do ambiente, das pessoas entre as quais ocorre, entre outras circunstâncias. (...)»
Os factos:
No dia 6/5/2021, o Alberto contactou telefonicamente um posto territorial da GNR, a fim de saber sobre o paradeiro do veículo de matrícula que indicou, tendo atendido a chamada o Raul, militar da Guarda Nacional Republicana, que se encontrava no atendimento. Logo de seguida, e após ter sido questionado por aquele se o veículo tinha sido interveniente em acidente de viação, o Alberto disse: «Vão para o caralho. Puta que vos pariu.» Nesse momento, o Alberto foi alertado para que estava a falar com um agente de autoridade ao serviço da autoridade, tendo aquele proferido diversas gargalhadas e desligado a chamada.
A lei:
Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas à sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.
Perante estes factos e esta lei, o Ministério Público (MP) decidiu acusar o Alberto da prática do crime de injúria agravado, considerando que, ao proferir aquelas expressões, o Alberto quis e conseguiu atingir o militar Raul na sua honra, brio profissional e consideração, tendo agido «de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei penal».
O processo seguiria para julgamento, mas a juíza a quem foi distribuído o processo considerou que a acusação era «manifestamente infundada» por os factos nela imputados ao Alberto não constituírem crime, pelo que a rejeitou.
Segundo a juíza, o bem jurídico protegido com este crime é a honra que tem duas dimensões: a subjectiva, que respeita à forma como cada pessoa se vê a si própria, à sua auto-estima; enquanto a objectiva respeita ao modo como essa pessoa é vista pelos outros, pela sociedade. Uma pessoa pode ver lesada a sua auto-estima sem que se registe qualquer lesão à sua consideração social, e a reputação de uma pessoa pode ser lesada sem que tal tenha qualquer consequência sobre a ideia que essa pessoa tem de si mesma.
Ora, as expressões em causa teriam sido formuladas pelo Alberto no plural, nunca em momento algum pessoalizando relativamente ao militar Raul, nem se dirigindo a ele em concreto, pelo que o que dissera poderia ser qualificado de rude ou socialmente reprovável, por ser desrespeitoso, seguramente lamentável, mas isso não era, necessariamente, um crime. A expressão «vão para o caralho» é uma interjeição sem dúvida mal-educada, associada a uma intenção de manifestar não querer ser incomodado ou para alguém se afastar, e a expressão «puta que vos pariu» é, de igual modo, uma interjeição de desagrado ou espanto. Qualquer delas traduzia mais um descontentamento ou desabafo do Alberto do que quaisquer intentos injuriosos para o Raul.
Recorreu o MP para o Tribunal da Relação de Évora (TRE), defendendo que o processo devia seguir para julgamento, e no passado dia 10 os juízes desembargadores Moreira das Neves, Maria Clara Figueiredo e Fernanda Palma explicaram que a injúria implica uma acção «que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado», não cabendo ao Direito Penal «proteger as pessoas face a comportamentos indelicados ou mesmo boçais ou perante meras impertinências» e, como já afirmara o Supremo Tribunal de Justiça, "não há expressões ofensivas independentemente do condicionalismo", já que o carácter injurioso de determinada palavra ou expressão está fortemente dependente do ambiente em que ocorre, das pessoas entre as quais ocorre e, entre outras circunstâncias, do seu relacionamento e dos seus hábitos de linguagem.
Ora, a descrição objectiva dos acontecimentos evidenciava que o Alberto, ao proferir tais imprecações no plural, notoriamente não tencionava depreciar o Raul, que, por acaso, estava do outro lado da linha; mais não eram do que um «desabafo desalentado, brejeiro, grosseiro e deseducado», mas que, seguramente, não era dirigido à concreta pessoa que atendera a chamada, pelo que não estavam preenchidos os requisitos legais para ser crime. E não há crimes por analogia...
A Relação de Évora – em obediência à lei – decidiu, assim, não ter fundamento a pretensão do MP de ver o Alberto sentado no banco dos réus e confirmou o arquivamento do processo. Uma excelente decisão mas que incomodará muito os que gostam de ver a justiça a criminalizar os mal-educados.
Cf. Direitos linguísticos e língua portuguesa + A história da língua e a relação com o direito linguístico
Artigo do advogado Francisco Teixeira da Mota, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público do dia 28 de janeiro de 2023. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.