« (...) Nunca entrei num programa, mesmo que em direto, tolhido pelo medo de dizer um disparate, mas está sempre um pouco presente. O maior receio é o de dar um enorme pontapé na gramática; imagino o meu pai a morrer de vergonha. (...) »
Com alguma regularidade, há cenas televisivas que se tornam virais nas redes sociais. Acontece quando o protagonista faz figura de urso por algum motivo. Quando assim é, tenho sempre esperança de que a figura “viralizada” seja bem-humorada e que saiba rir-se de si mesma.
Este dezembro deu-nos pelo menos duas dessas cenas. Uma aconteceu com a morte de Eduardo Lourenço. O jornalista Reinaldo Serrano, ao comentar na SIC a obra do filósofo, explicou que ele terminava os seus artigos dizendo que tinham um prazo de validade. Assinava sempre “Vence”, seguido da data. Mas Vence é o nome da terra onde Lourenço morava em França. Era como se eu assinasse “Braga, 29 de dezembro, 2020”. A galhofa foi inevitável e saudável. Há sempre uns palermas que aproveitam estas ocasiões para apoucar o protagonista – como se não fosse inevitável todos fazermos figuras ridículas de quando em quando –, mas a verdade é que a ideia é muito boa. Todos ganhávamos se os cronistas passassem a atribuir um prazo de validade ao que escrevem.
Mais hilariante foi o substituto de Graça Freitas, o subdiretor-geral da Saúde, Rui Portugal. A sua conferência de imprensa sobre a ceia de Natal foi tão inusitada que era impossível não ficar deliciado. Rir é uma excelente reação. De Rui Portugal, mas também de nós mesmos. O subdiretor fez o que exigimos que o Governo faça: tratou-nos como criancinhas sem autonomia nem capacidade para decidir como proteger os nossos da melhor maneira. Por muito humilhante que tenha sido, Rui Portugal prestou-nos um belo serviço. Como me disse um amigo, tornou muito mais leve a discussão em torno da quadra. De repente, dizer aos pais ou aos avós que não há beijos nem abraços ficou mais fácil. Tal como ficar no canto mais afastado da mesa.
É uma questão de tempo até o mesmo me acontecer. Já tenho a minha dose de calinadas, mas nada que seja de caixão para a cova (espero eu, claro). Nunca entrei num programa, mesmo que em direto, tolhido pelo medo de dizer um disparate, mas está sempre um pouco presente. O maior receio é o de dar um enorme pontapé na gramática; imagino o meu pai a morrer de vergonha.
Nos jornais, controlo o que escrevo, tenho tempo para fazer pesquisas e peço a uns amigos que leiam os artigos, pelo que é um risco controlado — e posso sempre optar por não opinar sobre um assunto. Às vezes, não há controlos de qualidade que valham. Aconteceu a Fernanda Câncio quando atribuiu a Lenine a autoria da exortação “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” Muitos riram-se com o disparate; o incitamento vem no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. Eu não me pude rir, ela tinha-me mandado o artigo antes de ser publicado e também me escapou.
Quando participava no programa “Conversas Cruzadas”, na Rádio Renascença, muitas vezes via-me sem rede. Não controlava a agenda e não dava para pedir dispensa sempre que não dominasse o tema da semana. Tanto tinha de discutir atentados terroristas como o novo nome do aeroporto da Madeira. Felizmente, o José Bastos, o moderador, informava-nos dos tópicos com antecedência e, muitas vezes, mandava-nos bibliografia. Assim, lá ia disfarçando.
No início de 2017, começou a insistir nas eleições francesas. Como não sabia nada de política francesa, fui conseguindo adiar o assunto. Mas, num belo domingo, o José Bastos obrigou-nos a discutir as eleições francesas. Eu nem o nome dos candidatos sabia e naquela semana, por problemas pessoais, não tinha tido tempo para me preparar. No dia anterior, não me restou outra alternativa que não a de pedir a uma amiga francófona, a Maria João, que me desse um curso rápido sobre presidenciais gaulesas.
O nome dos principais candidatos além da Le Pen (Macron, Hammon, Mélenchon e Fillon), a que partidos estavam associados, quem tinha maiores probabilidades de bater Le Pen numa segunda volta, etc. O curso rápido acabou com a Maria João a dizer-me quem é que eu devia apoiar: Emmanuel Macron. Tinha sido ministro da Economia de um Governo socialista, propunha uma agenda de modernização económica, era-me ideologicamente próximo.
E lá fui dar as opiniões da Maria João como se fossem minhas. Durante o debate, bateu-me a dúvida: «Teria estado o tempo todo a gozar comigo? Ter-me-ia instruído com uma série de disparates para dizer?»
(Durante o programa, quanto mais pensava, mais certeza tinha de que a Maria João, dona de um sentido de humor tramado, me tinha lixado. Saí do estúdio e telefonei-lhe a perguntar se ela se estava a rir e se eu tinha feito figura de urso a seguir o guião que me preparou.)
Não dei parte de fraco. Além do moderador e de mim, no debate estavam o Álvaro Almeida e o Silva Peneda. Falei como se dominasse o tema, fizemos as nossas apostas. Um apoiava o Fillon, o outro apoiava outro e, no fim, o especialista instantâneo acertou: ganhou o Macron.
Estive perto de fazer uma figura de urso bem pior do que Reinaldo Serrano ou Rui Portugal. Só não aconteceu porque a minha consultora, estranhamente, não me pregou tal partida. Mas há de acontecer, daí uma imensa ternura que tenho por quem faz figuras ridículas.