O nosso idioma // Língua e vida política
Cabíveis, quando se esperava cabais…
Um uso inesperado, mas bem aplicado
O sindicato pede mesmo a aplicação de medidas “cabíveis e conducentes à sua proteção”, recordando que, a 27 de outubro, o presidente do Chega, André Ventura, acusou os serviços da Assembleia de lhe “cortarem o tempo de intervenção”.
Observador, 28 novembro 2025
Este cabíveis surgiu numa notícia sobre uma queixa formal de alguns funcionários da Assembleia da República, apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Sul e Regiões Autónomas à secretária-geral da Assembleia da República, Anabela Cabral Ferreira, contra deputados do Chega. O motivo são alegados comportamentos que «afetam profundamente a dignidade, autoestima, saúde mental e integridade física dos trabalhadores», e na queixa pede-se a aplicação de medidas «cabíveis e conducentes à sua proteção».
Estranhei a palavra, esperava ali mais um cabais, com o sentido de «completas» ou «rigorosas», pela similitude de grafia, ou então um adequadas, termo mais usual para a circunstância. Porém, o cabível – «que tem cabimento; que é adequado ou se justifica» – está perfeito ali e até introduz uma modalização que o cabal – «completo» e «rigoroso», mais totalizante, definitivo e impositivo, não tem.
A expressão parece viver muito no socioleto jurídico brasileiro, como o atesta, por exemplo, um acórdão de 2024:
«definir se o bloqueio de cartões de crédito do devedor é medida cabível para garantir a efetividade do cumprimento da sentença»;
e
«A jurisprudência do STJ e de tribunais estaduais tem consolidado o entendimento de que tais medidas são cabíveis, desde que aplicadas de forma subsidiária e justificada [...].»
Ainda no português do Brasil, também é usada no domínio público com fundo jurídico-administrativo, significando «medidas adequadas, medidas ajustadas ou medidas que se justificam», como acontece, por exemplo, numa notícia do CNN Brasil que tem por título: «Funcionário do governo Trump a Moraes: "medidas cabíveis" vão continuar», e onde se afirma, a propósito de declarações do Subsecretário de Estado para a Diplomacia Pública e Assuntos Públicos dos Estados Unidos, Darren Beattie:
«E continuou com uma mensagem ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes: "Para o ministro Alexandre de Moraes e os indivíduos cujos abusos de autoridade têm minado essas liberdades fundamentais – continuaremos a tomar as medidas cabíveis.".»
Continuando no português do Brasil, o adjetivo cabíveis também é usado no sentido denotativo do termo, literal, físico, ou seja, algo «que pode caber» num determinado espaço, como se pode ver na exposição Tomarei as medidas cabíveis.
Já no português europeu, a expressão parece ter pouco uso, a julgar pelo CETEMPúblico que não nos devolve quaisquer resultados para cabíveis e apenas uma ocorrência para cabível:
«"É perfeitamente cabível e legítimo que a Universidade, pela alta responsabilidade que tem, pense em outras formas de intervenção", advogou Alarcão.»
Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies (Web Dialects) devolve-nos 1714 ocorrências para cabível e 3005 para cabíveis, sendo muito pouco expressivas ou mesmo residuais as ocorrências em português europeu.
Em resumo, os adjetivos cabível/cabíveis são usados esmagadoramente no português do Brasil e mais no sentido figurado – «que tem cabimento» – do que no sentido literal – «que cabe num espaço» –, sendo um daqueles casos em que a extensão semântica praticamente eclipsa o significado originário e literal da palavra.
