Etimologicamente, falecer é «faltar». Claro que, se houver um número suficiente de brutos a dizer falecer para designar outra coisa qualquer, então falecer passará a querer dizer isso.
Por enquanto, porém, o seguinte diálogo faz sentido e é bom português:
«Que é do Mendonça?»
«Faleceu.»
«Não morreu, pois não?»
«Ha ha ha, não, falei agora mesmo com ele.»
«Deu alguma razão para falecer?»
«Deve ter ido levar a filha à escola.»
Falecer também é «escassear», que não é tão mau como «faltar»:
«Há orégãos?»
«Só dos secos.»
«E coentros?»
«Coentros, há. Já faleceram mas agora há imensos.»
Falecer é o que nos acontece antes de morrermos: começamos a faltar às coisas, somos vistos só raramente e assim vamos falecendo cada vez mais até morrermos de vez.
Daí ser correcto dizer que alguém faleceu, mas calma, porque ainda não morreu.
Morrer é importante demais para estar com paninhos quentes. Dizer que alguém faleceu é querer evitar a única palavra que está à altura do que lhe aconteceu.
Dizer que o Mendonça faleceu é dizer que fraquejou, foi-se abaixo, não esteve no seu melhor, colocou mal o pé, teve de se ausentar, talvez não seja provável que regresse.
Se falecer fosse morrer, desfalecer seria voltar à vida. Os Walking Dead seriam Os Desfalecidos — e quem é que tem medo de um desfalecido?
Nesta linha, também “maiar” se poderia usar para a situação de quem recupera os sentidos depois de desmaiar. Quem desenjoa tem primeiro de enjoar, e para quem desmaia é a mesma coisa.
Nesse caso, aliás, “maiar” seria estar muito bem, vivinho da costa, a comer e a beber do melhor, a cantar e a rir, até ter de pagar a factura daquela “maiação” toda e, trás, desmaiar que nem um abade.
Quando alguém disser «faleceu», diga «deixe lá, pode ser que desfaleça».
Crónica do autor aqui transcrita, com a devida vénia, do jornal Público do dia 8 de maio de 2021, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.