« [...] Nada se compara à emoção de conseguir entender no original Homero, Eurípides, Heródoto, Aristófanes ou então Virgílio, Séneca, Petrónio e Apuleio, entre tantos autores maiores que a Antiguidade nos legou. [...]»
1.O paradoxo da popularidade
Quem se dedica ao estudo e promoção do legado da Antiguidade Clássica, grega e romana, habituou-se já a ter de lidar com uma situação aparentemente paradoxal: por um lado, a grande popularidade do imaginário ligado àquelas antigas civilizações, que fascina milhões de pessoas de todas as formações e idades; por outro, a dificuldade de atrair novos estudantes interessados em dedicar-se à aprendizagem das línguas que estão na base dessas culturas. Na primeira classe podem inserir-se, por exemplo, jogos de computador, filmes, séries televisivas, obras literárias (com destaque para o romance, teatro e poesia), que vivem de um processo de imersão no imaginário clássico, nos seus mitos, heróis, figuras carismáticas e respetivas mundividências, que são revisitados, interpelados e reinventados num processo que poderemos considerar globalmente como reescrita, o qual por sua vez motiva o campo fértil dos Estudos de Receção e da Literatura Comparada. À segunda, corresponde o estudo mais filológico das línguas clássicas, que comporta um grau de dificuldade próprio, mas que é inegavelmente fascinante, quando se vencem as circunstâncias próprias de serem línguas que vivem (ao menos à primeira vista) dos textos escritos e não da oralidade. Com efeito, nada se compara à emoção de conseguir entender no original Homero, Eurípides, Heródoto, Aristófanes ou então Virgílio, Séneca, Petrónio e Apuleio, entre tantos autores maiores que a Antiguidade nos legou. E não se trata apenas de entender essas línguas, mas de perceber a riqueza semântica que cada termo possui e a forma como plasmou conceitos, palavras e expressões que usamos amplamente no quotidiano. Tal como Monsieur Jourdain – essa notável personagem recriada por Molière no Bourgeois Gentilhomme –, que descobrira atónito que "dizia prosa" havia mais de quarenta anos, também nós "falamos grego e latim" todos os dias, mesmo quando disso não temos plena consciência.
2. O suave milagre
As línguas clássicas não são, portanto, línguas mortas e fossilizadas, mas antes idiomas que vivem em tantas outras línguas usadas ativamente por milhões de pessoas (desde o Português ao Inglês), cuja compreensão profundamente facilitam. Ainda assim, não é simples fazer passar esta mensagem aos jovens e às suas famílias, perante a premência de escolher entre estas áreas e outras em que a aplicação imediata é mais evidente. O afastamento progressivo destas matérias (que reformas várias do ensino vieram acentuar) levou a que a área disciplinar dos Estudos Clássicos tivesse chegado, no ensino público, a uma situação-limite: no ano letivo de 2014/ 2015, apenas 5 escolas de todo o país tinham alunos de Latim e só em 2 havia turma de Grego. O seu desaparecimento parecia, portanto, muito próximo e inevitável. Apesar deste cenário de chumbo, a comunidade nacional de classicistas nunca deixou de investir na formação de professores de Estudos Clássicos nem de fazer chegar às entidades competentes (Ministério da Educação e Ciência, Direção Geral da Educação) este problema, sugerindo propostas concretas de solução. Exemplo disso foi a criação de uma Oferta de Escola - Introdução à Cultura e às Línguas Clássicas - que desde então tem vindo a funcionar em vários pontos do país, com o objetivo principal de dar a conhecer melhor esta área. E naquele mesmo "annus horribilis" de 2015, a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra lançava um novo Mestrado em Ensino de Português e de Latim, mais ajustado à realidade concreta dos estudantes interessados em seguir a área da Formação de Professores e acompanhado de um forte investimento em estudos sobre a didática específica destas línguas. Apesar de, no passado recente, o Mestrado ter tido pouca procura, o número de inscritos duplicou no presente ano letivo, sendo possível prever um aumento consistente de candidatos interessados na via de ensino Português/ Estudos Clássicos em anos futuros. Esta onda positiva relativamente ao Latim e ao Grego, que já se fazia notar no ensino privado, começa também a ter visibilidade no ensino secundário público português. No presente ano letivo, existem já 7 turmas de Latim e 10 de Grego, apenas no território continental, a que se juntam igualmente turmas de Latim e de Grego na Madeira e nos Açores. Por outras palavras, o número de turmas mais do que triplicou, por comparação com a situação que se vivia ainda há escassos anos.
Na data em que se assinala o Dia Internacional da Língua Grega (9 de fevereiro), há razões objetivas para sublinhar essa efeméride – como oportunamente fez o embaixador grego em Portugal, Ioannis Metaxas, em entrevista recente [ao Diario de Notícias] – com a evocação de um dos muitos milhares de palavras que têm origem helénica: "enthousiasmos", que significa à letra "estar possuído por um deus". Ensinam os Antigos que o "enthousiasmos" deve ser celebrado na justa medida, sem alardes excessivos, mas este "suave milagre" da retoma das línguas clássicas parece, de facto, marcar a passagem discreta de um desses deuses antigos, caminhando pela brisa cálida da tarde.
Artigo do professor universitário Delfim Leão publicado no Diário de Notícias, em 9 de fevereiro de 2022.