« (...) Para alguns, a palavra marmeleiro, anichada nos recantos da memória, lembra a vara, haste flexível que, em tempos não muito distantes, servia para exercer a autoridade. Esse versátil instrumento substituía o chicote com que se vergastavam os muares manhosos que se recusavam a obedecer às ordens dos amos. (...) »
Marmeleiro lembra marmelo e marmelada, sobretudo marmelada, palavra que exportámos para outros idiomas, aí ganhando novos significados, conotações e sugestões, algumas bem brejeiras. Desenganem-se, todavia, todos os que só pensam em marmeladas!
Para alguns, a palavra marmeleiro, anichada nos recantos da memória, lembra a vara, haste flexível que, em tempos não muito distantes, servia para exercer a autoridade. Esse versátil instrumento substituía o chicote com que se vergastavam os muares manhosos que se recusavam a obedecer às ordens dos amos. Também era a férula com que se fustigavam as perninhas dos rapazolas quando faziam travessuras e se recusavam a obedecer aos progenitores. Era assim há 60 anos. Os marmeleiros proporcionavam esguias varas duras e inquebradiças que, naqueles tempos, aterrorizavam quem se portava mal, no entender de quem tinha o mando, obviamente.
Outrora os camponeses, quando efetuavam artesanalmente a trasfega do vinho para os barris, colocavam episodicamente no orifício superior dos mesmos, os frutos do marmeleiro. Diziam que, enquanto durasse a fermentação, os marmelos deixavam libertar os eflúvios da fervura e transmitiam ao mosto o seu delicado aroma. Só após concluída a fermentação os substituíam por rolhas de cortiça. Independentemente do resultado da operação isto era um ritual quase sagrado associado às vindimas e à pisa das uvas.
No livro La beauté par les plantes da editora Gründ considera-se que o cognassier («marmeleiro», em francês) é das melhores plantas para utilizar em preparados de cosmética, de tal maneira que até foi escolhida a imagem de dois reluzentes marmelos para ilustrar a capa do citado livro.
Mas subsistiam e subsistem ainda outros usos, mormente os de porta-enxertos. Os ramos dos marmeleiros, devido à sua rusticidade silvestre, enraízam rapidamente e facilitam a enxertia de frutíferas de maior valor comercial pertencentes à mesma família botânica, como as pereiras e as macieiras.
Ora o marmeleiro, denominado cientificamente por Cydonia oblonga, pertence à ilustre família das Rosaceae e à subfamília das Pomoideae. Julga-se que é originário do próximo oriente ou do sudeste da Europa, onde era já cultivado há 6 mil anos (a Turquia continua a ser um dos principais produtores). É um arbusto ou pequena árvore que raramente ultrapassa os 6 metros de altura. Tem folhas simples, ovadas, coriáceas e alternadas com pecíolo curto, sendo verdes brilhantes na parte de cima e tomentosas na página inferior. As flores, brancas ou rosadas, possuem cinco pétalas e cinco sépalas e são aromáticas. Os frutos que, quando imaturos, se revestem de uma fina pelagem, logo que amadurecem, no princípio do outono, adquirem uma tonalidade lisa amarela e brilhante. A copa é irregular e os ramos são flexíveis como já se aludiu. O marmeleiro consegue resistir a baixas temperaturas mas precisa de sol para produzir satisfatoriamente.
Embora os marmelos sejam frutos carnudos, eles raramente são consumidos crus por serem ácidos e adstringentes. É preferível comê-los cozidos ou assados. Os seus principais constituintes são tanino, hidratos de carbono, betacaroteno, vitamina C, potássio, magnésio, ácido málico e, sobretudo, pectina.
O meu saudoso amigo José Salgueiro, na obra Ervas, Usos e Saberes, dedica uma extensa descrição sobre as suas principais aplicações em medicina popular no Alentejo. Enumera mezinhas para debelar febres, cólicas, ureia e anginas. Em utilização tópica das folhas, aponta compressas e lavagens para frieiras, hemorroidas e cicatrização de feridas. As flores são peitorais e antiespasmódicas. A água da cozedura dos frutos proporciona uma tisana tónica para auxiliar as digestões e eliminar as diarreias. Finalmente, e na esteira no que também é mencionado na já referida La beauté par les plantes, diz que as sementes trituradas e misturadas com azeite cru proporcionam uma boa pomada para mamas gretadas, queimaduras, rugas, cieiro e outros transtornos da cútis.
Contudo, é a marmelada que faculta a mais vasta utilização dos marmelos. No opúsculo antigo Compotas de Frutas, Geleias e Marmeladas, reeditado pela Livraria Civilização (já encerrada), são mencionadas inúmeras receitas com destaque para a compota de marmelos, a marmelada de marmelos (na Inglaterra e noutros países preparam-na com laranjas, limões, maçãs, mantendo a designação portuguesa de marmelada) e a geleia. Note-se que os marmelos são comprovadamente os melhores frutos para fazer geleias devido à sua grande riqueza em pectinas, as quais se concentram na casca e nas sementes.
Ainda uma breve referência à marmelada branca que constitui o ex-libris gastronómico da cidade de Odivelas. Ela começou a ser confecionada pelas freiras Bernardas do respetivo convento e adquiriu notável fama, de tal maneira que até foi formada uma confraria alusiva para a promoção do produto. Fica somente este ligeiro lamiré porque a maneira, ou as várias maneiras, de a confecionar, fica para pesquisa dos gourmets e dos especialistas da nobre arte da doçaria.
Por fim, um apontamento sobre as gamboas, frutos de uma variedade menos rústica de marmeleiro. Distinguem-se dos marmelos comuns porque maiores, mais vistosos, têm menos acidez, a sua polpa é mais branda, mas são completamente destituídos de cheiro, ao contrário dos aromáticos marmelos.