Na conhecida bula Manifestis probatum, pela qual o papa Alexandre III reconheceu, em 23 de maio de 1179, a autoridade régia de D. Afonso Henriques e a independência do novo reino de Portugal, não figura nenhum dos dois vocábulos (Portucale, Portugallia) aventados pelo nosso consulente. Neste documento, na verdade, o papa reconhece a D. Afonso Henriques o título de Rex Portugalensium («Rei dos Portugueses») e chama ao novo reino Regnum Portugalensium («Reino dos Portugueses»). Recorde-se que o latim recorre frequentemente ao etnónimo, em vez do respetivo topónimo, para enunciar um cargo ou função ou para indicar um país ou região.
O vocábulo Portugalensium («dos portugueses») é o genitivo plural do adjetivo Portugalensis («português»), e este último provém, mediante um processo de sufixação perfeitamente regular, do topónimo Portugal, que obviamente já estava em uso por essa data. José Pedro Machado explica, no seu dicionário onomástico etimológico1, que este topónimo provém de Portucale, «designação primitiva da cidade do Porto», e atesta as seguintes formas em documentos antigos: Portumcale (séc. V), Portucale (séc. V), Portocale (séc. VI, VII e IX), Portugali (séc. VII e VIII), Portugal(e) (922-995), Portukal (data provável: 1013) e, finalmente, Portugal (1041).
A forma Portugalia, mais tardia (séc. XII), aparece em moedas e em muitos documentos, para não falar dos famosos Portugaliae Monumenta Historica, cuja recolha e organização foi encomendada pela Academia das Ciências de Lisboa a Alexandre Herculano. Leite de Vasconcelos (citado por José Pedro Machado no dicionário já referido) insurgiu-se veementemente contra este topónimo, «forjado hibridamente de Portugal, à imitação de Britannia, Francia, Gallia, Germania, Hispania, Italia, por meros latinófilos, que em matéria de etnologia geral não iam além do conhecimento de terminações vocabulares em -ia»...
Se é verdade que, no período clássico, o sufixo latino -ia se juntava normalmente a etnónimos e não a topónimos (por exemplo, Gallus > Gallia, Germanus > Germania), o que daria razão ao conceituado filólogo, não é menos verdade que o seu uso se foi estendendo a partir da Baixa Latinidade, como o atestam inúmeros topónimos latinizados que não provêm diretamente de etnónimos: Algarbia (Algarve), Brabantia (Brabant), Cantabrigia (Cambridge), Oxonia (Oxford), Stuttgardia (Estugarda), etc. Trata-se, por isso, de um topónimo já consagrado, embora em desuso, que não merece qualquer reparo. Já o mesmo não poderá dizer-se da variante Portugallia, mais tardia, que foi referida pelo consulente. Não há nada que justifique a duplicação do l, a não ser ignorância ou o desejo de imitar a... Gallia. É por isso de lamentar que esta forma figure na Wikipédia latina, o que ajuda a perpetuar o erro. Igualmente injustificável e condenável é a duplicação do l no adjetivo portugallicus...
Seja como for, a forma latina que vingou não foi nenhuma das anteriores, mas, sim, a velhinha Lusitania, que foi ressuscitada pelos renascentistas e se generalizou a partir de então. Apesar de o território da então Lusitânia não corresponder à totalidade do atual território nacional, a verdade é que os latinistas nunca sentiram qualquer perigo de ambiguidade a este respeito, tal como não o sentiram em relação aos topónimos Gallia, Germania, entre muitos outros, que também não correspondem exatamente aos atuais territórios da França e da Alemanha, respetivamente. O topónimo Lusitania provém do etnónimo lusitanus, que funciona como substantivo e adjetivo, e deste último deriva-se de forma regular o adjetivo lusitanicus. Ainda hoje os latinistas, sem qualquer rebuço, chamam Lusitania a Portugal, Lusitani aos portugueses, e Lusitanica lingua à nossa língua materna; «falar português», por exemplo, diz-se Lusitanice loqui.
António Freire, um latinista eminente, já falecido, que publicou cerca de 60 obras na segunda metade do século passado, algumas das quais em latim, deu como tradução de Portugal, no seu vocabulário2, as duas opções Lusitania e Portugalia, mas o etnónimo português traduziu-o apenas por Lusitanus. Na lista de nomes geográficos da pujante obra de Stearn, consagrada ao latim botânico4, figuram os vocábulos Lusitania e Portugallia (a tal forma errónea!) como traduções recomendadas de Portugal, mas a segunda remete para a primeira, à qual se segue o adjetivo lusitanicus. Na mesma obra (p. 208), aparece um pequeno exemplo de uma descrição latina do habitat de uma planta, onde pode ler-se que ela ocorre «praecipue in Hispania centrali et Lusitania meridionali» («sobretudo no centro de Espanha e no sul de Portugal»).
Quanto à nomenclatura binominal ou binária, formalmente introduzida por Lineu, é natural que os primeiros naturalistas que sentiram necessidade de denominar espécies pertencentes à fauna e à flora portuguesas tenham recorrido, sem hesitar, aos vocábulos que já então se tinham generalizado para expressar, em latim, tudo o que se referisse ao nosso território: lusitanus e lusitanicus. Lineu, aliás, deu o mote, ao cunhar o nome Asilus lusitanicus para designar um inseto díptero que descreveu em 1767. No mesmo ano, o eminente naturalista sueco escolheu o nome Exocentrus lusitanus para denominar outro inseto, desta vez um coleóptero. Ainda no século XVIII, Miller, Fabricius e Lamarck seguiram as pisadas do mestre sueco e valeram-se do adjetivo lusitanicus para designar mais cinco espécies. A mais conhecida é a Quercus lusitanica (carvalhiça ou carvalho-anão), descrita por Lamarck em 1785.
No século XIX, multiplicou-se vertiginosamente o número de espécies portuguesas descritas, e a mesma tendência manteve-se no século seguinte. A grande diferença reside no facto de, no primeiro, os naturalistas terem mantido a tradição de recorrer apenas aos vetustos vocábulos lusitanus e lusitanicus para cunhar o epíteto específico, ao passo que, no segundo, houve quem resolvesse introduzir umas novidades...
O monumental Catalogue of Life, que está disponível em linha4, contém informações sobre a designação latina, classificação e distribuição de mais 1,5 milhões de espécies e possui um motor de busca bastante eficiente. A minha pesquisa revelou a existência de 536 espécies e subespécies cujo epíteto específico contém um nome relacionado com Portugal. Destes 536 nomes:
a) 482 (ou seja, praticamente 90%) contêm o vocábulo lusitanicus (ou a forma feminina lusitanica, ou a neutra lusitanicum);
b) 46 (ou seja, quase 9%) contêm o vocábulo lusitanus (ou a forma feminina lusitana, ou a neutra lusitanum);
c) 4 contêm o vocábulo portucalensis;
d) 2 contêm o vocábulo portugalensis;
e) 1 contém o vocábulo portugalicus, e 1, a forma feminina portugalica.
Ou seja, 99% dos nomes contêm lusitanicus ou lusitanus, sendo os restantes nomes meramente residuais. Estes nomes residuais, além disso, restringem-se ao século XX, estando concentrados sobretudo nas duas últimas décadas. Um deles serviu mesmo para cunhar o epíteto específico de um dinossauro (Euronychodon portucalensis).
De todos estes vocábulos, o único que me merece sérios reparos é precisamente portucalensis, sobretudo por dois motivos. Em primeiro lugar, portucalensis provém de Portucale, vocábulo que, apesar de ter dado origem ao nome do nosso país, teve uma utilização muito restrita na designação do nosso território como reinado independente. Em segundo lugar, há latinistas que ainda hoje se servem deste termo para designar a atual cidade do Porto, o que pode dar azo a equívocos. Freire, por exemplo, na obra já referida, dá Oportum e Portucale como tradução do topónimo Porto. No dicionário de latim moderno editado pelo Vaticano5, «vinho do Porto» é traduzido por vinum Portucalense (p. 592). Por isso mesmo, parece-me de evitar o uso de portucalensis na nomenclatura científica.
Os restantes vocábulos (lusitanicus, lusitanus, portugalensis, portugalicus) são todos eles defensáveis do ponto de vista morfológico e semântico, mas os dois últimos pecam pela escassez de referências culturais e científicas, pelo que, no meu entender, deve ser dada primazia aos dois primeiros, na esteira dos nossos clássicos, bem como de Lineu e dos grandes naturalistas que lhe seguiram as pisadas. Entre lusitanicus e lusitanus, a minha preferência vai claramente para o primeiro, não só pela sua maior frequência, mas também por se tratar de um adjetivo “puro”, dotado do mesmo sufixo que ibericus, gallicus, germanicus, hispanicus, italicus e muitos mais, tão frequentemente utilizados para cunhar o epíteto específico de inúmeras espécies de plantas, animais e outros seres vivos.
1 José Pedro Machado: Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência. 3 vol. 1984.
2 António Freire, S. J.: Vocabulário Prático Português-Latino. (Separata da Gramática Latina). Braga 1956, 37 p.
3 William Stearn: Botanical Latin. History, Grammar, Syntax, Terminology and Vocabulary. Third edition, revised. Newton Abbot, London, North Pomfret: David & Charles 1983. xii, 566 p.
4 http://www.catalogueoflife.org/content/about
5 Lexicon Recentis Latinitatis. Editum Cura Operis Fundati cui Nomen “Latinitas”. Volumen I et II. In urbe Vaticana: Libraria Editoria Vaticana. A. MMIII. 728 p.