As imagens e os fantasmas - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Diversidades Artigo
As imagens e os fantasmas
As imagens e os fantasmas
O sotaque português em França

«(...) Nos meus tempos na UNESCO a porteira do prédio em que eu vivia disse-me: "O senhor, vê-se que é estrangeiro quando fala francês, mas a sua filha passa perfeitamente por francesa." Os nossos filhos são cidadãos europeus. (...)»

 

Da primeira vez que fui a França, em 1970, perguntaram-me numa loja qual a minha nacionalidade. Quando respondi que era português, senti a incredulidade do lojista. «Pois fala muito bem francês», disse o homem. «Os seus compatriotas que andam por aí não são capazes de falar bem a nossa língua.»

Em 1986 fui colocado na embaixada em Paris e as minhas filhas mais velhas foram frequentar a escola primária do bairro. Tinham alguns colegas portugueses, mas admiravam-se de ver quão mal esses meninos falavam português. As mães, geralmente porteiras ou empregadas domésticas, explicaram-nos então que só falavam francês com os filhos, para os ajudar a integrar-se na sociedade do país de acolhimento.

Em 2012, uma vez mais em Paris, agora como embaixador junto da UNESCO, conheci um respeitado intelectual e académico, filho de emigrantes portugueses, que preferia sempre falar connosco em francês. O seu português era aquele que os pais lhe tinham transmitido, com um forte sotaque provinciano, que o classificava (ou desclassificava) socialmente face aos portugueses como nós. O seu francês, claro, era excelente.

A marca social da língua portuguesa e da pronúncia do português constitui uma barreira potencialmente discriminatória para os nossos compatriotas que vivem e trabalham em França, quer face à sociedade francesa, quer face à nossa própria sociedade.

A força das imagens estereotipadas dos portugueses continua a fazer-se sentir na opinião francesa, não obstante a evidente mudança no estatuto social e cultural das segunda e terceira gerações daqueles a quem chamamos luso-descendentes, mas que se sentem (e bem) ao mesmo tempo portugueses e franceses.

Se a demarcação social pela língua e pelo sotaque, no caso específico dos portugueses em França, tem sido objeto dos interessantes estudos de Graça dos Santos, estas minhas considerações arrancam da leitura de um livro importante sobre as imagens dos portugueses em França, na ficção literária, portuguesa e francesa dos últimos 50 anos, uma edição da Imprensa Nacional na coleção Comunidades Portuguesas, iniciativa conjunta com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, virada para o conhecimento da nossa diáspora.

Olhares Cruzados Francófonos e Portugueses é o título desta obra de Maria Isabelle Vieira, que constitui uma análise dos olhares e das imagens recíprocas, de franceses e portugueses, sobre a comunidade dos portugueses em França.

Duas coisas me impressionaram neste excelente trabalho: primeiro, a escassa presença dos nossos migrantes na produção romanesca portuguesa mais recente: com exceção da obra precursora (mas tão mal recebida entre nós!) de Olga Gonçalves e, mais recentemente, do romance Livro, de José Luís Peixoto, a ficção portuguesa debruça-se mais sobre o exílio, político ou cultural, daqueles que se expatriaram para fugir ao regime opressivo do Estado Novo e à guerra colonial, do que sobre a emigração económica, aquele salto dos portugueses que fugiam clandestinamente de um país onde a emigração era proibida e a miséria prevalecia.

Segundo, a persistência das imagens do Portugal salazarista nas obras francesas, que, apesar do impacto da Revolução de Abril, continuaram a veicular os estereótipos do Antigo Regime, ou porque nós próprios não nos libertámos ainda deles, ou porque, muitas vezes, PortugalLisboa são apenas cenários para uma evasão ou reencontro dos protagonistas de um romance, sem abrir qualquer diálogo com personagens portuguesas.

São tendências, por certo, e na riqueza das fontes consultadas por Maria Isabelle Vieira, será possível encontrar outras referências e outras tendências. Não obstante, da leitura deste livro guardei esta impressão forte.

A imagem de um país e de um povo na perceção (por mais diferenciada que seja) dos outros países e dos outros povos faz-se sempre através ou apesar dos estereótipos que se construíram em seu redor, acontecendo que, muitas vezes, os próprios objetos desses estereótipos se dedicam a reforçar e a consolidar essas imagens.

Mas a evolução das coisas, dos tempos e das gerações tem forçosamente o seu efeito: não creio que hoje um lojista parisiense se pudesse espantar com o meu francês. Pelo contrário, nos meus tempos na UNESCO a porteira do prédio em que eu vivia disse-me: «O senhor, vê-se que é estrangeiro quando fala francês, mas a sua filha passa perfeitamente por francesa.» Os nossos filhos são cidadãos europeus.

Fonte

Crónica do poeta e embaixador português Luís Filipe Castro Mendes, publicado no Diário de Notícias no dia 20 de junho de 2023.

 

Sobre o autor

Poeta e diplomata português nascido em 1950, em Idanha-a-Nova (Castelo Branco). Começou a colaborar muito jovem, entre 1965 e 1967, no Diário de Lisboa-Juvenil. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, em 1974, ingressou um ano depois na carreira diplomática sucessivamente em Luanda, Madrid e Paris, além de, ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ter estado colocado no Conselho da Europa. Recados (1983) marcou a estreia deste autor, cuja obra, inserindo-se numa estética pós-modernista, conta com títulos como Areias Escuras (1984), Seis Elegias e Outros Poemas (1985), A Ilha dos Mortos (1991), O Jogo de Fazer Versos (1994), Correspondência Secreta (1995), Outras Canções (1998), Os Dias Inventados (2001), Lendas da Índia (2011), A Misericórdia dos Mercados (2014), Outro Ulisses Regressa a Casa (2016), Poemas Reunidos (2018), entre outros.