«(...])[U]m país é tanto mais estável quanto mais se sustentar numa mesma comunidade linguístico-cultural. (...)»
A propósito do conflito em curso entre a Rússia e a Ucrânia, muito se tem falado de blocos geopolíticos – quando, antes disso, se deveria falar de blocos geolinguísticos e geoculturais. Não porque o conflito em causa não tenha também contornos estritamente geopolíticos – mas, antes disso, o que está em causa é o direito da Rússia de defender as populações russófonas de Donetsk e a Lugansk.
Dito isto, temos consciência de que a Rússia está a usar esse seu direito (legítimo, a nosso ver) para outros voos de legitimidade bem mais questionável – não tanto pelos fins, mas, sobretudo, pelos meios. Com efeito, se a Rússia tem todo o direito de querer a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) o mais longe possível, já não é legítimo que equacione sacrificar a Ucrânia em prol desse desiderato.
Se é legítimo que as populações russófonas da Ucrânia se separem do país – como já acontecia, de facto –, não é menos legítimo que o povo assumidamente ucraniano mantenha o seu país. No mundo ideal, seria isto que deveria ser salvaguardado – inclusivamente, com o recurso a referendos, para apurar a vontade de cada uma das populações. Infelizmente, não foi esse o caminho seguido. E falamos aqui também dos media ocidentais, que, dia após dia, ecoaram apenas a versão das populações não russófonas do conflito em curso, como se as populações russófonas da Ucrânia nem sequer existissem.
Como este conflito igualmente atesta, um país é tanto mais estável quanto mais se sustentar numa mesma comunidade linguístico-cultural. Apenas para falar da Península Ibérica, Portugal e Espanha são, positiva e negativamente, excelentes exemplos disso – independentemente da opinião que cada um tenha sobre as tentações separatistas no nosso país vizinho. Bem sabemos que há outros países que se sustentam apenas porque são ou parecem ser «bons negócios». Mas, em última instância, o que mais conta é a língua e a cultura.
De resto, é no seio de uma mesma comunidade linguístico-cultural que há real solidariedade, tanto a nível interno como externo. É desde logo por isso que, não obstante toda a retórica político-mediática, ninguém está realmente disposto a sacrificar-se pela Ucrânia.
No caso de Portugal, também estará fora de causa o envio de tropas, a menos que a OTAN se envolva. Nesse plano da solidariedade internacional, se essas decisões fossem directamente tomadas pelo povo, isso poderia antes acontecer, por exemplo, em Moçambique – para pacificar o território de Cabo Delgado, se tal fosse solicitado pelos moçambicanos. Para compreender o mundo, importa, antes de mais, com efeito, falar de blocos geolinguísticos e geoculturais.
Cf. Hegemonia cultural na Ucrânia
Artigo de opinião incluído no jornal Público em 23 de fevereiro de 2022.