« (...) Para a “família tradicional portuguesa” e para uma parcela de profissionais da educação, carregar o sotaque e o vocabulário da antiga colónia é motivo de preocupação e tratamento. «Falar brasileiro» representa uma chaga a ser curada com terapia. Mas a qual Brasil se referem essas pessoas? (...)»
Queiram ou não queiram os juízes da língua-pura-portuguesa, não há mais espaço para discriminação e preconceito.
É da encruzilhada entre género e raça que vos falo. Trazer uma pensadora negra do sul global no título deste artigo não foi por acaso. Saúdo, assim, Lélia Gonzalez em toda sua ousadia e preparo intelectual para reivindicar uma Améfrica que é também indígena e afrodiaspórica. Nessa América plural, a língua é componente em constante movimento e (re/des)construção. Ao evocarmos um Brasil que, desde antes de ter naus europeias atracadas em suas baías, falava línguas do tronco tupi, é preciso lembrar também do “pretuguês" evidenciado por Lélia (1983):
«É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante?» 1
Para a “família tradicional portuguesa” e para uma parcela de profissionais da educação, carregar o sotaque e o vocabulário da antiga colónia é motivo de preocupação e tratamento. «Falar brasileiro» representa uma chaga a ser curada com terapia. Mas a qual Brasil se referem essas pessoas? O do morro ou do asfalto? O das capitais ou dos Sertões das Gerais? Dos ditos millennials ou da gente que, como eu, ainda dá risada virtual com a repetição da letra k?
Kkkkk! É até engraçado pensar que há quem acredite numa língua una e engessada em um país de dimensões continentais e população que ultrapassa centenas de milhões. No entanto, a piada passa a ser de péssimo gosto quando atentamos para o facto de que a xenofobia impressa nesse discurso tem consequências em ambientes como o escolar, por fomentar o bullying racista e xenófobo. Como esperar de uma criança portuguesa o apreço pela convivência com crianças brasileiras ou africanas se o referencial de cultura e sapiência for somente o reflectido no espelho?
Nota-se, assim, que o pensamento colonialista não está presente apenas em algumas fachadas comerciais, nomes de ruas ou na hora de contar sobre as invasões ultramarinas e intitular os Descobrimentos. Como nos lembra Grada Kilomba, é tempo de estilhaçar a máscara imposta pelo colonialismo. É preciso celebrar o Português de Gilberto Gil – o mais recente imortal da Academia Brasileira de Letras –, de D. Ivone Lara, das histórias contadas por Conceição Evaristo, por Ariano Suassuna.
Nesta altura, rememoro a celebração dos 30 anos do S.O.S Racismo, quando a cidade do Porto recebeu a Mostra Internacional de Cinema Anti-Racista (MICAR), tendo Emicida como um dos seus convidados. Na ocasião, o rapper e escritor deixou nítido que Portugal tem todos os dias a oportunidade de construir presente e futuro num cenário sem reprodução ou manutenção dos resquícios de um passado de sangue e exploração. É mesmo «tudo p'ra ontem» e não há tempo a perder com quem não enxerga na diversidade linguística um valor a ser cultivado.
Viva a viva Língua Portuguesa falada no Brasil que agora atravessa não os mares, mas sim, através do entretenimento produzido em solos tupiniquins, atravessa as redes! Não há quem cale a multipotentes2 do Português que pulsa em um país de gente que não foge à luta em seus quatro cantos: «Nós somos madeira de lei que cupim não rói.»
1 N. E. – É discutível afirmar que a substituição de /l/ por /r/ constitua uma marca do contacto com línguas africanas. Note-se que tal permuta já se registava na Idade Média e se manteve nas modalidades regionais de Portugal e da Galiza, conforme assinalam, por exemplo, José Joaquim Nunes no Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa, Clássica Editora (1945, p. 121) e Ramón Mariño Paz em Fonética e Fonoloxía Históricas da Língua Galega, Edicións Xerais de Galicia (2017, 394/395).
2 N. E. – Sic. A autora parece querer dizer que «não há quem cale multipotentes do Português», talvez empregando multipotentes com o significado de «pessoas muito enérgicas» ou «células estaminais cuja capacidade de diferenciação lhes permite produzir diversos tipos de células especializadas» (dicionário da Infopédia).
Artigo da advogada Madalena Rodrigues publicado no dia 19 de novembro de 2021 no suplemento P3 do jornal Público