« (...) Testas positivo quando és positivamente posto à prova? Não, fazem-te um teste e o teu teste atesta que está(s) positivo. (...)»
O covidês é uma língua tão contagiosa que até o Ciberdúvidas já foi contagiado! Tendo deixado o nobre ofício de tirar dúvidas a quem as tinha, começou a dedicar-se a doar dúvidas a quem as não tinha — Covidúvidas. Rendido à nova língua relâmpago dos meios de comunicação social, entregou-se com tal paixão à redacção de um "glossário da Covid-19" que não só recebe sem reparos «testar positivo/negativo» como até fornece definições de tudo (do «achatamento da curva» à «mutalização» da dívida pública). Testar é, contudo, um verbo idoso, que merece um tratamento digno, como todos e cada um dos nossos idosos.
No latim, o verbo depoente testor significava «testemunhar», daí decorrendo uma segunda acepção de «atestar, declarar» – sendo testis a «testemunha». Nos dicionários de Bluteau e Morais (sécs. XVII e XVIII) testar surgia somente na acepção de "deixar em testamento": testar meia dúzia de cruzados, por exemplo. Também como verbo transitivo directo, ganhou depois o sentido de «ver se funciona (bem), pôr à prova» alguém ou alguma coisa, como estamos a fazer ao testar um medicamento, uma vacina ou o Serviço Nacional de Saúde.
Em covidês, porém, acabo de ouvir que temos que «aumentar a capacidade de testar» e que devemos «testar os nossos idosos». Mas não é precisamente isso o que mais temos feito até agora? Testá-los, sim, «pô-los à prova», ver se resistem ou não resistem assim, a frio, a sós, sem a mão quente dos que amam e o estetoscópio frio daqueles a quem tanto precisam de confiar a sua muita dúvida e pouca vida. Testar na acepção de «submeter(-se) a um teste médico» é neologismo acabadinho de nascer, mas infectado, de filiação anglófona. É claro que, se todos os dias há dias novos, é para que haja coisas novas, incluindo palavras novas e usos novos de palavras velhas. Mas que há de errado com o velhinho e despretensioso fazer testes, maravilhosamente polivalente? Foi varrido pela onda dos anglicismos, ou não há tempo a perder com perífrases rasas, para fazer testes, para dizer que foram positivos ou negativos, que deram negativo ou positivo?
Testar positivo, então, ascende directamente à categoria de idiomatismo do covidês. Testas positivo quando és positivamente posto à prova? Não, fazem-te um teste e o teu teste atesta que está(s) positivo. Mas então não és tu que testas, testam-te, não, fazem-te apenas um teste, que até deviam ser dois, mas não há testes... Ups, não percebi, mas eu sou do Norte... tu percebeste? Se és do Norte e não percebeste[,] finge que percebeste, senão testas negativo no teste da inteligência regional.
N.E. — O glossário O léxico da covid-19 tem um triplo e exclusivo objetivo: 1) O registo lexical dos termos e expressões (neologismos e, até, mero jargão,inclusive) marcantes deste período da pandemia do novo coronavírus, com os respetivos significados e contextos, com a particular atenção àqueles que se revelam mais densos ou mais afastados dos conhecimentos do falante comum de português, e sempre com a devida remissão a fontes científicas (caso dos termos médicos) e autorais (v.g., frases de organismos e autoridades sanitárias e governamentais); 2) A contribuição, em simultâneo, para "memória futura", desta nova realidade vocabular na língua portuguesa.; 3) A criação de um corpus alargado do léxico especificamente relacionado com as várias áreas da pandemia, com vista a possibilitar futuras reflexões e/ou investigações linguísticas.
Os pareceres sobre a aceitabilidade de termos ou de expressões que vão surgindo dia a dia têm destaque nas Aberturas e no Consultório, no escrupuloso cumprimento da razão de ser Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (e não apenas "Covidúvidas", como acintosamente lhe chama a professora Anabela Leal de Barros). Já lá vão 24 anos de cumprimento da missão de esclarecimento, gracioso e universal, de todos os seus consulentes, por esse mundo fora. Foi o caso específico da controversa expressão «testar positivo/negativo», como se pode (re)ler aqui.
Artigo publicado no Boletim Informativo ILCH, n.º 7 | maio 2020 | Edição Especial. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.