« (...) As duas principais escolas de pensamento discordam amplamente sobre se o populismo é uma ideologia fina que envolve um elemento moralista (ao colocar um povo "puro" contra uma elite "corrupta") ou se é simplesmente um discurso que constrói um povo como sendo contra uma elite, sem qualquer outra especificidade ligada a esses dois grupos. (...) »
Desde a invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, até à revolta semelhante no Brasil em 2023, os políticos de extrema-direita estão a infringir os ideais democráticos em todo o mundo. Se queremos realmente enfrentar o desafio que representam, temos de deixar de os tratar como atores legítimos e democráticos e, em vez disso, vê-los como a ameaça que realmente são.
Uma parte muito importante deste esforço é também um passo bastante simples. Temos de deixar de nos referir às políticas de extrema-direita como "populistas".
Nos anos mais recentes, a investigação séria sobre o populismo chegou a um certo consenso que torna claro que este é secundário, na melhor das hipóteses, na definição de qualquer tipo de política. As duas principais escolas de pensamento discordam amplamente sobre se o populismo é uma ideologia fina que envolve um elemento moralista (ao colocar um povo "puro" contra uma elite "corrupta") ou se é simplesmente um discurso que constrói um povo como sendo contra uma elite, sem qualquer outra especificidade ligada a esses dois grupos.
No entanto, ambas concordam que o elemento populista de qualquer movimento é secundário em relação à política e à ideologia. Os partidos de esquerda e de direita podem ambos utilizar uma retórica populista, mas isso pouco nos diz sobre a forma como efetivamente governam.
Mas o populismo tornou-se, no entanto, uma palavra da moda. Inúmeros académicos surfaram esta onda em busca de financiamento e de citações, muitas vezes sem trabalhar devidamente a literatura sobre o tema.
Para além da prática académica pobre, a utilização descuidada da palavra também teve um impacto negativo no discurso público em geral. Estas quatro consequências devem convencê-lo a deixar de usar a palavra populista para descrever alguém que, na realidade, é apenas um extremista de direita.
1. Mascara a ameaça que a extrema-direita representa
Não deveria constituir surpresa que muitos políticos de extrema-direita, desde Jean-Marie Le Pen, em França, até Matteo Salvini, em Itália, tenham abraçado o termo populismo. Mesmo quando é usado pelos seus adversários como um insulto, os políticos de extrema-direita preferem o termo a outros mais precisos, mas também mais estigmatizantes, como “extremista” ou “racista”.
Isto pode ser testemunhado, por exemplo, na série de seis meses de 2019 do Guardian sobre «o novo populismo». Na maioria das vezes, a palavra populismo foi usada nesta série para descrever políticas muito mais sinistras do que a simples oposição entre a elite e o povo. Personalidades políticas como Steve Bannon são muito melhor descritas como extrema-direita ou direita radical. Estes termos não são apenas mais precisos, mas tornam a ameaça que representam muito mais clara do que o obscuro populismo.
2. Exagera a força da extrema-direita
Quando utilizamos o termo populismo, criamos frequentemente uma ligação semântica entre a palavra e o povo. Por isso, quando permitimos que a extrema-direita seja descrita como populista, estamos a insinuar incorretamente que ela está a captar o que o povo quer ou que fala em nome da «maioria silenciosa» – algo que Nigel Farage e outros adoram afirmar.
O mito está ainda mais enraizado pela perceção de que a ascensão do "populismo" é o resultado das escolhas feitas pelas pessoas no fundo da escala sócio-económica – quer sejam definidas como a «classe trabalhadora branca», os «deixados para trás» ou os «perdedores da globalização». Isto ignora a análise que mostra que grande parte do apoio à política reacionária vem predominantemente de grupos abastados.
Poder alegar que se fala em nome dos que não têm voz é particularmente útil numa altura de desconfiança generalizada em relação à política dominante, por isso não nos devemos surpreender que os políticos de extrema-direita gostem de ser chamados populistas. Isso permite-lhes apresentarem-se falsamente como a alternativa ao status quo.
3. Legitima a política de extrema-direita
Ao estarem erradamente ligadas ao povo através da palavra populismo, as exigências da extrema-direita são confundidas com exigências democráticas. Portanto, é agora comum ver os principais partidos absorverem a política da extrema-direita com base no pressuposto errado de que estas ideias são «o que o povo quer».
Os direitos das comunidades marginalizadas, como os migrantes, os requerentes de asilo, as pessoas racializadas, as comunidades LGBTQ+, as mulheres e/ou as pessoas com deficiência, têm estado todos sob vários níveis de ameaça por parte dos principais intervenientes da elite, seja através de políticas, campanhas políticas ou cobertura noticiosa. Muitas vezes, as pessoas que ameaçam estes direitos beneficiam da pretensão de que estão simplesmente a responder à opinião pública. Os governos supostamente de “centro-direita” recebem, portanto, carta branca para adotarem políticas de imigração draconianas. Afinal, é em nome do “povo”.
4. Bloqueia o progresso democrático, distraindo-nos
O hype populista é geralmente acompanhado por um aumento do discurso anti-populista, que retrata o populismo como uma ameaça existencial à democracia liberal. Mal escondido por trás deste uso pejorativo do termo populismo está, na melhor das hipóteses, uma desconfiança, se não uma antipatia total, em relação ao “povo”.
Ao culpar “o povo” pelos problemas nas nossas democracias, as elites ficam isentas de ter de questionar o seu próprio papel na facilitação da crise. Podem também utilizar a ameaça muito real representada pela extrema-direita para justificar a necessidade de apoiar o status quo, alertando: «nós somos maus – mas eles são piores».
O que fazer?
Reduzir a extrema-direita a uma ameaça populista permite que o mainstream se isente de responsabilidades. Ao combater a extrema-direita, devemos ser honestos sobre as decisões que nos levaram a este momento reacionário. Se o mainstream não assumir a sua responsabilidade, não terá qualquer hipótese de derrotar o monstro que ajudou a criar. Isto aplica-se particularmente àqueles que têm acesso privilegiado à formação do discurso público, como os meios de comunicação social, os políticos e os académicos em menor grau.
O primeiro passo nesta jornada é usar os termos corretamente. Chamar a extrema-direita de populista mantém-nos na nossa inércia. Para ativar o sentido de urgência necessário para derrotar estas tendências, temos de ser honestos sobre o tipo de política que vemos diante de nós. Se a extrema-direita ostenta orgulhosamente a insígnia do “populismo”, devemos perguntar-nos como isso a ajuda. Eles sabem que isso lhes confere legitimidade. Por que, então, deveríamos fazer o jogo dos extremistas cuja aversão à democracia tem sido repetidamente demonstrada?
Cf. Fake news: o Brasil é crédulo e educação midiática é saída
Texto da autoria dos investigadores universitários ingleses Aurelien Mondon e Alex Yates, publicado originalmente no The Conversation, traduzido e transcrito pelo Esquerda.net no dia 11 de março de 2024.