Ouro Preto (em Minas Gerais, Brasil) até poderia ser o cenário ideal para falarmos do assunto no fundo, a sede da primeira grande conspiração contra o domínio português e o palco onde foram expostos os restos mortais do supliciado Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é uma cidade que mantém a memória desse cruzamento entre Portugal e o Brasil. Foi aí que decorreu mais um Fórum das Letras, e que contou com participações dos vários mundos da Língua Portuguesa, chegados de Portugal, do Brasil e de África. Em várias das mesas e debates que compuseram o encontro o tema (que não fazia parte da lista de assuntos para discussão) aparecia com a mesma volatilidade com que se escondia: deve, ou não, assinar-se um Acordo Ortográfico que unifique a grafia da Língua Portuguesa?
O debate sobre o assunto corre a várias velocidades e a ritmos diferentes. Geralmente, como tive oportunidade de referir num encontro no Rio de Janeiro, quando não há mais nada para discutir, discute-se o Acordo Ortográfico. Não é um assunto de primeira grandeza; mas é um elo diplomático e político no desconcerto linguístico.
A primeira sensação, vivida por escritores brasileiros ou portugueses tem a ver com a sensação, iniludível, de uma perda afectiva — o trema, as consoantes mudas, os acentos nas paroxítonas, o fim do acento agudo nos ditongos abertos, três novas consoantes adoptadas, mais um certo número de casos que mudarão a grafia aqui e ali.
Se no caso brasileiro só 0,45% das palavras mudarão de ortografia, o caso português acrescenta um pouco mais menos de 3%, suponho. Diante dessa baixa percentagem de mudanças, qualquer posição soará como insignificante. Os políticos assumem que a Língua Portuguesa ficará "mais forte" e que essa unificação levará a uma maior credibilização no domínio internacional. Talvez seja um argumento pífio, mas convém desdramatizar: o essencial do português de Portugal e do português do Brasil não mudará substancialmente. Continuaremos a dizer autocarro quando os brasileiros escrevem e dizem ônibus, manteremos talho onde no Brasil se usa açougue. A Língua Portuguesa não sofrerá com isso. Os onze ou doze milhões de falantes europeus, os cento e oitenta milhões da América, e os cerca de vinte milhões de África terão, portanto, uma grafia idêntica. Passaremos a escrever ação em vez de acção. Os brasileiros deixarão de escrever acadêmico1 e tirarão o trema a tranqüilo.
Perder-se-á muito? Ganharemos em comunicabilidade? É legítima essa mudança? Ou seja pode um grupo de linguistas, iluminados ou não (geralmente tenho dúvidas), decretar essa mudança?
Acontece que nós não somos donos da nossa língua. Ela é mais falada fora das nossas fronteiras do que em Portugal. Acontece que a maior parte das inovações, rasgos de originalidade e de criatividade que têm sido acrescentados à nossa Língua, têm chegado de fora — e do Brasil mais do que de outro lugar.
1 N. E.: Não é verdade que na variedade brasileira se deixe de empregar o acento circunflexo para indicar vogal tónica fechada antes de consoante nasal (m e n). No Brasil, continuarão a estar correctas grafias como fenômeno, fônico, acadêmico, ingênuo. Os nossos agradecimentos a D´Silvas Filho, que nos permitiu observar este aspecto.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, de 12 de Novembro de 2007