DÚVIDAS

Decassílabos numa tradução da Ilíada (Odorico Mendes)

Mais uma vez recorro à ajuda do Ciberdúvidas, embora, desta vez, num plano mais teórico.

Comecei a ler recentemente a tradução de Odorico Mendes da Ilíada. Por exercício apenas mental, tentei escandir seus primeiros versos para encontrar-lhes o ritmo. A mim surgiram como decassílabos, o que uma rápida pesquisa pela Internet pareceu mais do que confirmar. Entretanto, embora algumas fontes indiquem que Odorico Mendes fez uso do decassílabo heroico, minha escansão deu-me a impressão de um padrão ou sáfico ou ao menos deveras variado, o que me leva a crer que não devo estar escandindo corretamente. Poderiam os senhores me dar sua impressão e análise?

Eis os seis primeiros versos, com os quais me limitei a trabalhar até agora:

«Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles / A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, / Verdes no Orco lançou mil fortes almas, / Corpos de heróis a cães e abutres pasto: / Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem / O de homens chefe e o Mirmidon divino.»

Resposta

Amorim de Carvalho, no seu Tratado de Versificação Portuguesa (Porto, 1941, p. 26) alerta-nos para o facto de que «o heróico e o sáfico são frequentemente combinados», o que significa que num poema podem ocorrer decassílabos «de acentuação interna na 6.ª e na 10.ª sílabas [decassílabo heróico, porque o seu ritmo, vigoroso e grave, é adequado aos assuntos de caráter épico»] (idem, p. 25) e «de acentuação na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas [sáfico] (idem, p. 27).

Uma vez que se está a analisar a questão do decassílabo sáfico, importa assinalar, também, que Cunha e Cintra nos alertam para a possibilidade de este tipo de decassílabo «ter a 1.ª ou a 2.ª sílaba também fortes» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 684), caso que exemplificam com a seguinte estrofe:

Quan/do eu/ te/ fu/jo e/ me/ des/vi/o/ cau(to)

Da/ luz /de/ fo/go/ que/ te/ cer/ca, oh/! be(la),

Con/ti/go/ di/zes/, sus/pi/ran/do a/mo(res)

«— Meu/Deus/! que/ ge/lo/, que/ fri/e/za a/que(la)!»

(Casimiro Abreu)

Assim, e tendo em conta estas observações, em relação à escansão que fizemos dos versos que nos apresentou, apercebemo-nos de que se trata, de facto, de versos decassílabos em que se verifica a ocorrência de quatro versos sáficos e de dois heróicos:

Can/ta/-me, ó/ deu/sa/, do/ Pe/lei/o A/qui(les) — sáfico

A i/ra/ te/naz/, que/, lu/tu/o/sa aos/ Gre(gos), — sáfico

Ver/des/ no Or/co /lan/çou/ mil/ for/tes/ al(mas), — heróico

Cor/pos /de he/róis/ a/ cães/ e a/bu/tres/ pas(to): — sáfico

Lei/ foi/ de/ Jo/ve, em/ ri/xa ao/ dis/cor/da(rem) — heróico

O/ de ho/mens/ che/fe e o/ Mir/mi/don/ di/vi(no). — sáfico

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