No programa Liga D’Ouro do canal CMTV, transmitido em 18/07/2024, o advogado e comentador sportinguista Carlos Barbosa da Cruz utilizou a forma crucifixar ao referir-se ao guarda-redes Kovacevic do Sporting (ver vídeo abaixo). Alguns telespectadores podem ter questionado a opção por este verbo, acreditando que o correto seria crucificar. Mas será mesmo assim?
Verdade é que o verbo mais utilizado, em referência a «submeter ao suplício da cruz, pregar na cruz; cruciar; [por derivação de sentido] atormentar ou torturar em termos emocionais ou morais; [por derivação de sentido] mortificar, sacrificar o que é terreno e material; [em sentido figurado] criticar duramente, falar mal de, estigmatizar alguém», é o verbo crucificar. Trata-se de um verbo transitivo direto com origem no latim clássico crucifīgo, is, fīxi, īxum, īgĕre, «pôr na cruz, crucificar», pelo latim tardio eclesiático crucificāre, «pregar na cruz», de acordo com o Dicionário Houaiss. Historicamente, atesta-se desde a Idade Média, com formas como crucifigar (séc. XIII) e croçeficar ou, já com o aspeto contemporâneo, crucificar (séc. XIV).
Contudo, este mesmo dicionário, assim como os dicionários Priberam, Michaelis e Aulete atestam o verbo crucifixar. Trata-se de um verbo sinónimo de crucificar e a sua origem é a combinação de crucifixo com o sufixo -ar. Não vale, portanto, a pena corrigir o comentador desportivo da CMTV, pois está tudo certo com a opção por este verbo, ainda que seja um verbo muito menos utilizado que crucificar, tanto assim que nem há registo de ocorrência do mesmo no Corpus do Português, de Mark Davies, por exemplo.
Curiosamente, no que diz respeito ao nome relacionado, registam-se os vocábulos crucificação e crucifixão, ambos com o significado de «ato ou efeito de crucificar; cruciação, cruciato, crucifixão; [derivação por extensão de sentido] o suplício da cruz, aplicado a Cristo e a certos criminosos da Antiguidade; [em sentido figurado e de uso informal] imposição de uma culpa; acusação» (Dicionário Houaiss). No Corpus do Português, tanto ocorre crucificação, derivado por sufixação de crucificar, como crucifixão, que, por via erudita, vem do latim crucifixio, -onis. A mesma fonte faculta ainda uma ocorrência de "crucifixação", que não sendo forma impossível, como derivada de crucifixar, será muito discutível. Note-se que o único dicionário que a acolheu foi o Priberam.
Ao analisar, portanto, a questão levantada pelo uso do termo crucifixar, percebemos que tanto crucificar como crucifixar são formas válidas na língua portuguesa, embora a primeira seja muito mais comum. A existência de crucifixar nos dicionários e a sua formação etimológica justificam o seu uso, mesmo que raramente encontrado em corpora linguísticos. Este caso destaca a riqueza e a diversidade da língua portuguesa, bem como a importância de compreender e aceitar variações linguísticas. Assim, ao corrigir o comentador da CMTV, estaríamos a ignorar a validade e a história de uma forma legítima da nossa língua.