Por vezes, nas minhas aulas de Português como Língua Estrangeira, sou surpreendida com algumas questões singulares que me deixam a pensar sobre a forma como nós, falantes nativos, usamos a língua. Há uns tempos, um aluno perguntou-me se o «desculpa lá» que tinha ouvido na rua significava «I’m sorry». De facto, «desculpa lá» pode ser traduzido para o inglês como «I’m sorry», contudo existe na expressão «desculpa lá» um certo sentido que não parece ter equivalente noutras línguas e tudo por causa da palavra lá. Mas afinal o que é este lá? E qual a função desta palavra em expressões como «desculpa lá»?
Conhecer uma língua não se reduz ao conhecimento da gramática dessa língua, pois o produto efetivo do uso da língua pode ter uma extensão variável, levando em conta as situações sociais concretas em que emerge e a intencionalidade comunicativa do falante. Nas conversas mais espontâneas, não preparadas ou não planificadas com antecedência, é comum os falantes utilizarem determinadas unidades linguísticas como lá no seu discurso. A estas unidades linguísticas dá-se o nome de marcadores conversacionais ou discursivos.
Do ponto de vista semântico, os marcadores discursivos não contribuem para o conteúdo verbal do enunciado, ou seja, a presença destes elementos numa frase não afeta o conteúdo da mensagem. Estas unidades caraterizam-se também por independência sintática. Todavia, apesar de não acrescentarem informação sintática ou semântica, os marcadores conversacionais operacionalizam a progressão discursiva e interativa entre falantes. Quanto à sua posição na frase, apresentam uma grande mobilidade distributiva, surgindo em posição inicial, medial ou final. Conforme a posição que assumem, podem adquirir valores distintivos, nomeadamente, sinalização de trocas entre falantes (como por exemplo: «olha»; «presta a atenção»1), mudanças de assunto (como por exemplo: «de outro modo»1) ou a marcação de iniciação ou fim de uma conversa (como por exemplo: «em primeiro lugar»; «por último»1).
Importa ainda mencionar que os marcadores conversacionais integram palavras pertencentes a diferentes classes: advérbios, locuções adverbiais, interjeições, conjunções, verbos, nomes ou locuções interjetivas ou adverbiais. Contudo, não formam uma classe gramatical, mas antes funcional, sendo que esta funcionalidade é pragmática, o que significa que estas unidades linguísticas são interpretadas tendo em conta o contexto, as caraterísticas dos falantes e a situação comunicativa. No fundo, a principal caraterística destes elementos é a polifuncionalidade, isto é, podem ser usados para codificar diferentes instruções, em função do contexto discursivo em que ocorrem.
Muitos dos marcadores discursivos do português resultam de uma reanálise sintática e semântica de advérbios (como por exemplo: agora; assim; enfim; já) ou de sintagmas preposicionais (como por exemplo: «de qualquer modo»; «em particular»; «em primeiro lugar») que, em estados da língua anteriores, desempenharam apenas funções sintáticas e semânticas no quadro da frase e que entretanto sofreram um processo de reanálise, passando a desempenhar também funções ao nível da organização textual.
Os marcadores conversacionais são elementos cruciais de um texto que permitem sinalizar diferentes tipos de conexões entre enunciados, sequencializando o texto e guiando o interlocutor na interpretação. Fundamentalmente, ao codificarem instruções sobre os nexos que devem ser instituídos entre os enunciados, os marcadores conversacionais eliminam qualquer eventual ambiguidade e reduzem os custos do processamento, facilitando, assim, a construção de uma representação mental coerente do texto.
Assim sendo, retomando o assunto inicial relacionado com o significado de lá na expressão «desculpa lá», podemos assumir que, embora seja tipicamente usado como um advérbio, lá pode surgir em situações diversificadas que vão para além do seu uso enquanto advérbio, assumindo muitas vezes as caraterísticas dos marcadores discursivos. No fundo, o lá da expressão «desculpa lá» é usado como uma partícula expletiva e que marca informalidade no discurso, demonstrando que o relacionamento estabelecido entre os dois falantes é de proximidade e familiaridade.
1. Estes exemplos são retirados do Dicionário Terminológico.