− Tu andas a fazer das tuas! Andas a fazer a boca doce a quem?
As opções do falante ao construir uma simples frase oferecem a quem o ouve / lê com atenção o espanto que se pode ter perante um ato de criatividade. A eficácia da simplicidade, a exploração dos sentidos, as intenções escondidas. Na comunicação quotidiana (e não só), a pobreza na seleção vocabular é frequente a cada esquina de frase. Não obstante, a mesma pobreza constrangedora e sinalizadora de preguiça ou desconhecimento linguístico é um desafio interpretativo constante porque os significados explorados, esses, podem ser ricos na sua diversidade.
Acompanhemos, pois, o verbo fazer, que vai fazer as honras da casa, fazendo um pouco de sala, para explicar que tudo se deve a uma questão de competição entre palavras. Enquanto muitos verbos se limitam a fazer número, outros a fazer pestana e outros ainda a fazer castelos no ar, há um grupo restritivo que faz das tripas coração para fazer olhinhos aos falantes. Os verbos desta elite esforçam-se tanto para serem capazes de fazer rir como de fazer chorar as pedras da calçada, fazendo para tal todo o tipo de disparates, enfim, fazendo trinta por uma linha para estar sempre na moda e, assim, fazer a cabeça a quem fala. Com eles ninguém faz farinha e, se necessário for, fazem-se de novas ou fazem uma cena. Tudo para estar sempre no escaparate das palavras. Fazem-se notar e todos acabam por escolhê-los em qualquer ocasião: quando estão a fazer as unhas, a fazer horas, a fazer-se ao trabalho ou até a fazer cara de urso.
De uma forma geral, faz-se vista grossa ao verbo fazer, não por simpatia, mas porque ele nos faz o ninho atrás da orelha e nós deixamos de o ver. E assim, transparente, ele vai fazendo as vezes dos outros verbos porque com estes ele faz farinha. E eles não fazem nada. Até faz espécie! Parece que tanto lhes faz. Podiam, pelo menos, fazer-se de vítimas e o verbo fazer e os compinchas faziam-se de novas. Mas não! Não há nada a fazer!
Todas sabem que a atividade de “ocupação ilegal” dos sentidos faz mossa. Mas, esta mesma atividade usurpadora não deixa de ser contraditória: sendo uma marca de pouco esforço por parte dos falantes, é indutora de um acréscimo de esforço interpretativo por parte de quem lê ou ouve. Tão ao estilo dos dias que correm!
Pequeno glossário:
fazer das suas: realizar disparates
fazer a boca doce a alguém: agradar para recolher benefícios
fazer as honras da casa: ser o anfitrião
fazer sala: conversar com uma visita
fazer número: não servir para nada
fazer pestana: dormir durante um curto espaço de tempo
fazer castelos no ar: elaborar grandes projetos
fazer das tripas coração: vencer um sentimento de desagrado
fazer rir / chorar as pedras da calçada: ter imensa graça / ser muito trágico ou comovente
fazer disparates: agir de forma errada
fazer trinta por uma linha: fazer imensos disparates
fazer a cabeça a alguém: convencer alguém de alguma coisa
fazer farinha: agir com altivez
fazer-se de novas: fingir não ter conhecimento
fazer uma cena: manifestar-se publicamente de forma agressiva
fazer horas: deixar passar o tempo
fazer-se ao trabalho: começar a trabalhar
fazer cara de urso: fazer má cara
fazer vista grossa: fingir que não se vê alguma coisa
fazer o ninho atrás da orelha: iludir, enganar
fazer as vezes de: substituir temporariamente
fazer espécie: causar estranheza
tanto faz: não importa
fazer-se de vítima: vitimizar-se
fazer-se de novas: fingir que se ignora algo
(Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea)