Neste apontamento transcrito do jornal "Público"*, o economista e professor universitário português António Bagão Félix critica o uso de certas formas de pronunciar e escrever, que se instalam à revelia da norma-padrão.
A relação dos portugueses com os acentos não é pacífica, sejam eles agudos, graves ou circunflexos. E, já agora, também não é boa com alguns assentos, mais os lavrados do que os sentados. Já dizia Machado de Assis que «escrever é uma questão de colocar acentos».
Há dias, a selecção portuguesa jogou com a equipa do rochedo britânico de Gibraltar, certamente para preparar os difíceis jogos de apuramento para o Mundial 2018 em que enfrentará as Ilhas Feroé e Andorra. Pois nesses dias, antes e durante a gloriosa vitória lusa, não houve vivalma nas televisões que tivesse pronunciado bem a palavra Gibraltar. Este nome não tem origem anglófona, antes deriva do árabe (corruptela de Jabal-al-Tariq, que significa monte de Tariq). Em vez de acentuarem a última sílaba, todos a transformaram em palavra grave pronunciando-a como “Gibráltar”. Felizmente que Trafalgar, outra palavra que é de origem árabe e não inglesa, já só faz parte da história, senão lá teríamos que gramar nos noticiários “Trafálgar” em vez de “Trafalgár”.
Estes são erros que, pela insistência, se tornaram “normais”. Já Horácio dizia nas suas Epístolas que “uma vez lançada, a palavra voa irrevogável.” E de tal sorte que, quando certas palavras são bem pronunciadas, é como se fossem mal ditas (e quase malditas…). Outro exemplo bem consolidado é Flórida em vez de Florida. Tal qual – saindo agora da geografia – quando em vez de se dizer acordos com o o fechado (ô) , se prefere erradamente pronunciar com esta vogal aberta (acórdos). Será que a moda vai chegar aos “abórtos”?
Já no domínio da saúde há, entre várias, três palavras que são, amiúde, mal pronunciadas: hepatite, bactéria e vacina. Se quanto a esta última, o costume de abrir o a da antepenúltima sílaba que é átona (vácina) é mais regional do que nacional, quanto às outras duas, as televisões e a maioria dos profissionais de saúde preferem o esplendor da “acento tónico” deslocalizado, “hepátite”. Caso ainda mais estranho, é ouvir-se “báctéria”, ou seja como se tivesse dois acentos, quem sabe se para melhor eficácia antibiótica…
O velhinho acento circunflexo vem ficando reduzido a uma insignificância e, em alguns casos (dos quais o novo AO está absolvido), simplesmente despedido como nas palavras paroxítonas terminadas em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão de sócio.
Enfim, uma plétora de erros ou alterações a despropósito, perdão pletora.
Texto publicado na rubrica "Tudo menos Economia" do jornal Público, em 6/09/2016, escrito conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.