«(...) No reino ordinário dos telejornais, este desatino entre a língua e o palato produz outras tantas pérolas sonoras: "axeias do Douro; uxinquenta feridos; uxérebros da operação; uxitados responsáveis", etc., etc... (...)»
O erudito José Leite de Vasconcelos estudou a dialetologia e a glotologia portuguesa e elaborou um mapa com as suas variantes, em finais do século XIX. Com esses materiais linguísticos produziu a sua tese de doutoramento, que defendeu na Universidade de Paris. Grosso modo, o incansável etnógrafo propôs a existência de quatro grandes territórios dialetológicos em Portugal: 1) o interamnense (na antiga província de Entre Douro e Minho), onde distinguiu a variedade do Porto e a da Póvoa, mais recentemente crismada de variedade do Baixo-Minho e Douro Litoral; 2) o trasmontano; 3) o beirão; 4) o meridional (entre o Mondego e o Guadiana).
A esta grelha, Vasconcelos acrescentou subdialetos e codialetos, como o mirandês, o riodonorês e o guadramilês, além do barranquenho. Posteriormente, autores como Paiva Boléu ou Lindley Cintra introduziram novas categorias linguísticas como os "falares" (ex. de Riba-Minho, Baixo Vouga e Mondego, entre outras variedades locais).
Se o filólogo beirão vivesse hoje, confrontar-se-ia decerto com uma nova variedade fonética, que despontou nas últimas décadas pelos territórios da província audiovisual-desportiva e alastrou célere ao espaço informativo generalista: suspeito que o respeitável erudito o viesse a apelidar de "caisxodrês", um "falar" hodierno que emerge da cultura nativa das margens da bacia do Tejo ("homo tagus"), coeva da novel idade geológica do Antropoceno, sucessora do desgastado Quaternário por via da excessiva intervenção humana no corpo do planeta Terra.
Este "falar" descuidado, ou sotaque "chique", traduz-se no seguinte protótipo-relato à flor da relva:
– «uxadinos perdiam por doijero aos treuze minutos e ao xinquenta sofreram utrejero».
Mas, no reino ordinário dos telejornais, este desatino entre a língua e o palato produz outras tantas pérolas sonoras:
– «axeias do Douro; uxinquenta feridos; uxérebros da operação; uxitados responsáveis», etc., etc...
É certo que a variedade do Porto, do "homo duriensis", resiste no seu rústico "pom", "murcom" e "dragom" (ora debilitado...), mas é tão vetusta como a terra onde nasceu. Ao invés, esta espécie audiovisual resulta de uma criação artificial, recente, com características de um "meme", conceito criado por Richard Dawkins na obra O gene egoísta (1976). No essencial, uma espécie de vírus cultural, à semelhança do biológico, que se reproduz sem freio, como moda, no universo da comunicação verbal. "Nuxinemas" (ou seja, nos pequenos ecrãs lá em casa)...
in Jornal de Notícias de 25 de janeiro de 2016.