O autor responde a Carlos Reis, coordenador de um estudo sobre a situação da língua portuguesa no mundo. Réplica da Carlos Reis aqui.
Leio no Público a notícia sobre os resultados de um estudo sobre a situação da língua portuguesa orientado pelo meu amigo Carlos Reis e noto em especial a afirmação de que «neste momento, não há muitas condições para o Português ser uma língua de ciência, e querer fazer dele uma língua de negócios também é um pouco uma miragem».
Isto, que põe de rastos, só por si, a ideia de «valor económico da língua portuguesa» tão cara ao Ministro da Cultura, faz com que me questione sobre a óptica em que esse estudo, que evidentemente ainda não conheço, terá sido conduzido.
Ter-se-á considerado o Português como língua da modernidade? Como língua da integração e da cooperação? Como língua apta para as novas tecnologias? Como instrumento da diversidade cultural? Como língua de contacto e permuta entre os povos? Como língua do Direito e do desenvolvimento? Como língua da União Europeia? Como língua de projecção mundial? Como língua cujas capacidades e virtualidades intrínsecas são adequadas à formulação do pensamento rigoroso, à investigação científica, à prática empresarial?
Ter-se-á ponderado que a proximidade entre o Português e o Espanhol acaba por redundar numa mais-valia de inteligibilidade internacional para nós, exactamente em áreas como a ciência ou os negócios? Ou ter-se-á encarado a nossa língua apenas como uma bugiganga menor face à hegemonia do Inglês? E, ainda nesse caso, ter-se-á procedido a um estudo comparativo daquilo que, noutros países da UE, se conclui quanto às línguas respectivas, com bem menor projecção no mundo, como o Francês, o Alemão, o Polaco, o Italiano? Quantos casos de pessimismo semelhante e de demissão de iniciativa no tocante à ciência e aos negócios foram detectados? Por idênticas razões, que futuro se prevê para o Português como língua de criação cultural?
Ter-se-á ponderado que a falta de um vocabulário científico e técnico comum é, essa sim, um factor inviabilizante da amplificação do papel do Português na ciência? E que, sem esse vocabulário, nenhum Acordo Ortográfico poderá entrar em vigor?
Enfim, da notícia do Público retiro ainda uma nota de complacência patética, relativa ao «modo como a classe política se comportou na questão do Acordo Ortográfico». Realmente, o meu amigo Carlos Reis não pode referir nos mesmos termos a classe universitária... Consideremos dois depoimentos, um brasileiro e um português, relativos ao Acordo de 1986, mas com plena actualidade quanto ao actual:
O Prof. Sílvio Elia declarou: «A meu ver, o que contribuiu maximamente para tal descontentamento [com o AO em Portugal e no Brasil] foi o não terem sido ouvidos, em tempo oportuno, as pessoas e entidades credenciadas para fazê-lo. Refiro-me às áreas de Letras das grandes Universidades, à Academia Brasileira de Filologia, às várias Academias de Língua Portuguesa espalhadas pelo país, ao Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, aos filólogos e linguistas de uma maneira geral».
A Prof.ª Maria Helena Mira Mateus disse: «O que é mais interessante em todo este processo é que não se tenha discutido a questão ortográfica do ponto de vista linguístico».
Pois é. A classe política assumiu competências que não lhe cabiam e prescindiu de ouvir quem as possui. Insiste-se numa Ota ortográfica. O resultado está à vista...
in Público, 29 de Maio de 2008