Primeiramente, cabe uma observação a respeito dos termos: sotaque e pronúncia. Sotaque se define por nuances que envolvem, entre outros aspectos, ritmo, acento, timbre, e não deve sofrer avaliações do tipo certo ou errado. O sotaque varia conforme as regiões e, até mesmo, conforme os grupos sociais. Pode ser, inclusive, escolha do falante, já que somos capazes de imitar os sotaques de regiões ou grupos a que não pertencemos originalmente. Somos, igualmente, passíveis de adoptar, mesmo involuntariamente, um determinado sotaque devido a uma convivência intensa com falantes de outras regiões ou por nos deslocarmos para outra região que não aquela em que vivemos por mais tempo e que caracterizava nosso modo de falar.
Pronúncia é um termo usado com frequência para nos referirmos ao modo de articulação próprio dos fonemas-padrão de cada língua. Fazendo a diferença entre os fonemas, propriamente ditos, que são distintivos, já que o uso de um ou de outro implica mudança de significado nas palavras em que estão inseridos, como é o caso de caro e carro.
Aproveito o exemplo dado pela consulente para ilustrar minhas afirmações.
As distribuições sistematizadas do som da letra r em português podem ser:
fraco, forte e posvocálico. Essas distribuições são inerentes à língua portuguesa, mas podem ter realizações ligeiramente diferentes conforme a região de origem de quem fala. Consideremos quatro regiões: Belo Horizonte (BH), Rio de Janeiro (RJ), Interior (I) e Portugal (P — Lisboa).
O som fraco, como em caro e prato, realiza-se do mesmo modo nas quatro regiões.
O som forte, como em carro, rua e Israel, realiza-se BH = RJ, mas com a possibilidade de alofones diferentes, sendo em BH aspirado e no RJ quase "nulo"; e I = P com a possibilidade de alofone vibrante múltipla.
O som posvocálico, como em corda, porta e mar, realiza-se em cada uma dessas regiões de um modo diferente, sendo que os alofones também variam muito; no RJ há quase uma anulação total, por isso, os portugueses imitam os cariocas dizendo "vou falá", "o má", etc. Em P o som posvocálico se iguala ao som fraco, sendo que em seu alofone realizado em fim de palavra, como em mar, ocorre "acréscimo" de um fonema vocálico [e] que torna-se também objeto de brincadeiras entre os falantes da variedade brasileira.
Voltando à questão inicial, não há sotaque "mais correto", e é interessante que haja toda essa diferença entre uma pronúncia "arrastada" e uma outra aspirada, por exemplo. A diversidade, seja ela de que natureza for, abre espaço para trocas produtivas entre grupos e indíviduos, como as partilhas que fazemos neste site, à distância, ou como as que se pode fazer a cada dia entre os colegas de trabalho.
Deixo, porém, duas citações de estudiosas da área a título de reflexão sobre a instituição de um sistema-padrão em termos fonológicos:
«Que pronúncia, que variante tomar como base, como modelo? A dos grandes centros urbanos (que não são tantos e são tão diferenciados), a da classe social mais privilegiada, que representa uma minoria em nosso país?» (Callou & Leite, 2000:46).
«A linguagem-padrão vem a ser apenas uma variedade entre muitas, embora uma variedade particularmente importante, pois atua como uma das forças contrárias à variação. Não existe nenhum aspecto inerente nas variantes não-padrão que as torne inferiores» (Callou & Leite, 2000:96).
E ainda:
«No que respeita à realização de uma língua em diversas regiões (à sua distribuição geográfica), as variedades regionais, ou dialectos, têm idêntico estatuto linguístico. Assim, o termo "dialecto" não refere uma forma diferente (ou desprestigiada) de falar uma língua, mas sim a forma de falar uma língua conforme a região a que pertence o falante» (Mateus & Villalva, 2006:75).
OBS: Para a terminologia usada, servi-me daquela usada em: Silva, Thaïs Cristófaro. Fonética e Fonologia do Português. São Paulo: Contexto, 2003.