«(...) [A] ideia mais difundida entre os linguistas é a de que o proto-indo-europeu — que deu origem ao português, ao inglês, ao russo, ao ucraniano… — era falado na região da actual Ucrânia. (...)»
Por estes dias, já todos sabemos que, na Ucrânia, se fala ucraniano, mas também russo. Ora, dizer isto já é simplificar muito a questão, porque o país é habitado por falantes de ucraniano, por falantes de russo, mas também de outras línguas — e muitos destes falantes falam várias línguas, ou mesmo uma língua de contacto como o súrjik, uma espécie de portunhol entre o russo e o ucraniano.
Será a situação ucraniana uma situação excepcional? Nem por isso: a Europa está a abarrotar de situações comparáveis.
As fronteiras europeias são muito mais movediças do que a situação particular portuguesa, muito estável ao longo de muitos séculos, faz crer. No nosso continente, há territórios que pertenceram a muitos países ao longo dos últimos três séculos (para não recuarmos mais), com frequentes deslocações de populações e políticas linguísticas complexas. Assim, as fronteiras linguísticas são bastante diferentes das fronteiras políticas, além de serem muito mais vagas e porosas.
A Europa tem muitos países com populações que falam línguas dos vizinhos. A Itália tem regiões em que o alemão e o francês são considerados co-oficiais (o Valle d’Aosta / Vallée d’Aoste e o Trentino-Alto Adige/Südtirol). A Roménia tem zonas onde uma grande parte da população fala húngaro. A Finlândia inclui regiões de língua sueca, incluindo as Ilhas Åland, onde o finlandês nem sequer é oficial. A França tem territórios onde se falam línguas que associamos aos vizinhos (o País Basco francês, a Catalunha Norte, a Alsácia…), embora sejam línguas que não vieram de fora: já ali estão há muito tempo.
Se olharmos para as línguas minoritárias, temos um mapa ainda mais complexo, da Itália à Espanha, passando pela Alemanha, pelo Reino Unido, pela Rússia… Há países que nem sequer escolheram uma língua principal, como a Suíça.
Enfim, complicações linguísticas há em quase todos os países da Europa.
Desarrumações e sobreposições
A intrincada História da Europa foi deixando estas desarrumações no terreno. Até aqui, no nosso cantinho, vemos desarrumações linguísticas que têm origem no século XII: o galego e o português estão separados por uma das mais antigas fronteiras do mundo, mas estão tão próximos que há galegos (e um ou outro português) que defendem serem ainda a mesma língua — e não esqueçamos o mirandês, com origem na língua do Reino de Leão.
Muitas destas complicações não correspondem exactamente a línguas faladas em diferentes territórios do mesmo Estado. Na Europa, sempre houve territórios em que convivem populações com línguas diferentes, que se usam, misturam ou separam no terreno, para lá da arrumação de qualquer mapa. Desde países trilingues, como o Luxemburgo, passando por territórios onde há duas línguas oficiais (várias regiões de Espanha, a cidade de Bruxelas, entre tantos outros casos) e ainda cidades onde o bilinguismo foi — ou ainda é — a norma. Aliás, a própria Lisboa do século XVI, ainda antes dos Filipes, era uma cidade que falava em português e em castelhano.
A Ucrânia — o segundo maior país da Europa em território, só atrás da Rússia, que tem a maior parte do território fora da Europa — não é excepção. Excepção, aliás, só mesmo a Islândia…
Proximidades linguísticas
Há quem olhe para a situação ucraniana e encontre outra aparente excepcionalidade: numa Europa de línguas claramente distintas, o ucraniano e o russo seriam línguas particularmente próximas.
Ora, é verdade que estão próximas — são línguas com origem no continuum dialectal do eslavo oriental, que deu origem ao russo, ao bielorrusso e ao ucraniano — mais a ocidente, temos o eslavo ocidental, com línguas como o polaco e o checo, e mais a sul o eslavo meridional, com línguas como o sérvio, o croata, o búlgaro… Todas estas são línguas próximas, mas têm tradições linguísticas e literárias distintas. Mais: um russo dificilmente compreende um ucraniano a falar ucraniano; o contrário será bem mais fácil, por via da aprendizagem do russo por muitos ucranianos.
Esta proximidade, mais uma vez, é perfeitamente natural no nosso continente. As línguas escandinavas estão tão próximas que, em certas situações, falantes de línguas diferentes conseguem conversar sem mudar de idioma. Aliás, podemos dizer que uma das línguas norueguesas (há duas e cada uma tem duas versões, uma oficial e outra não, numa profusão de padrões muito curiosa) é uma espécie de súrjic ou portunhol dano-norueguês (falo do norueguês Bokmål).
Há mais: o croata e o sérvio (e ainda o bósnio e o montenegrino) estão tão próximos que a divisão entre línguas é tudo menos clara. Há ainda búlgaros que consideram o macedónio um dialecto da sua língua… Todas estas línguas são padrões criados a partir de um contínuo de falares sem divisões claras.
Também as línguas latinas foram criadas a partir de um antigo continuum dialectal. Como referi, saber se o galego e o português são a mesma língua ou não é uma discussão linguisticamente legítima — e há muitos outros casos assim noutros países. Há territórios onde as línguas latinas se misturam e sobrepõem sem as fronteiras que a nossa imaginação treinada na leitura de mapas políticos deseja.
Todos estes são apenas exemplos de muitas situações por essa Europa fora em que a proximidade de línguas torna muito difícil a sua classificação e divisão. Neste contexto, a separação entre ucraniano e russo é até particularmente consensual, pelo menos fora da Rússia: são duas línguas distintas que pertencem à mesma família.
A origem das línguas da Europa
A ideia de que cada Estado corresponde a uma nação e a uma língua, todas claramente demarcadas e bem distintas das demais, embora seja uma ideia muitíssimo forte, é muito mais recente do que pensamos — e muito enganadora. A Ucrânia, mais uma vez, não é excepcional. É apenas mais um país europeu, com uma história complexa, que ainda se percebe nas línguas que se ouvem nas ruas.
Já agora, uma curiosidade que também vai bater à porta da Ucrânia. Quase todas as línguas da Europa (com pouquíssimas excepções, entre elas o finlandês, o húngaro e o basco) provêm de uma antiga língua que os linguistas chamam proto-indo-europeu (que também deu origem a línguas de outras paragens, como o persa e o hindi). O território onde este idioma se falava não é fácil de delimitar e é uma das grandes questões da linguística histórica. No entanto, hoje em dia, a ideia mais difundida entre os linguistas é a de que o proto-indo-europeu — que deu origem ao português, ao inglês, ao russo, ao ucraniano… — era falado na região da actual Ucrânia.
A História da Europa passa por ali — e não é de agora.
[Nota do autor] Crónica no Sapo 24 dedicada ao meu amigo Serguéi Lúnin, tradutor e historiador ucraniano de língua russa, que escreve também em português. O Sérgio vive em Kharkiv (ou Carcóvia). Agradeço-lhe as sugestões para este texto. Para conhecermos melhor a origem da particular situação linguística da Ucrânia, o Sérgio está a preparar um texto em português sobre o tema.
Apontamento da autoria do professor universitário Marco Neves, publicado no blogue Certas Palavras em 3 de abril de 2022.