« (...) Lembro-me de um dicionário antigo na biblioteca do meu avô, publicado pela Accademia della Crusca, em que surgia o lema que escolheram: «Il più bel fior ne coglie». (...) [S]endo essoutro eu adolescente e ignorante, pensei que estava a dizer «a flor mais bela não se colhe. (...) »
Desde 1583 que a Accademia della Crusca dá o litro pela língua italiana. Foi um ano antes de aparecer o primeiro Dom Sebastião.
Um pouco depois, em 2016, um miúdo de 8 anos chamado Matteo olhou para as pétalas fartas de uma flor e lembrou-se de inventar a palavra petaloso. A professora dele, Margherita Aurora, mandou a palavra à Accademia della Crusca que, depois de debatê-la, a aprovou. Mas petaloso só ganhou vida, como acontece com todas as palavras de todas as línguas, quando começou a ser usada. No Twitter, por exemplo, contaram-se mais de 40 mil utilizações.
Lembro-me de um dicionário antigo na biblioteca do meu avô, publicado pela Accademia della Crusca, em que surgia o lema que escolheram: «Il più bel fior ne coglie». Hoje sei que se refere à mais bonita flor que se apanha mas, sendo essoutro eu adolescente e ignorante, pensei que estava a dizer «a flor mais bela não se colhe».
Essa flor seria a língua, claro, mais bonita do que qualquer flor. Os académicos da Crusca estavam a pensar na língua de Dante, mas a aplicação estendia-se obviamente à flor do Lácio.
Da mesma maneira, crusca é farelo mas, atendendo ao trabalho da Accademia a defender a língua italiana das intrusões grosseiras, porque não há-de ser também joio, para nos permitir falar na separação do trigo do joio?
O Grande dizionario della lingua italiana dirigido por Salvatore Battaglia e completado em 2002 tem 22000 páginas em 21 volumes e consegue-se comprar hoje por mil e tal euros. Incrivelmente a Accademia della Crusca decidiu digitalizar este maravilhoso monumento lexicográfico e em 2019 colocou-o online.
Quanto custa uma assinatura? Para comparar, o Oxford English Dictionary que eu assino (a preço de saldo) custa 90 libras por ano. Que tal niente?
N. E. – O lema da Accademia della Crusca – «Il più bel fior ne coglie» – é um verso do poeta Petrarca (1304-1374) e significa «a flor mais bela que disso (do grão moído) se colhe», uma imagem alusiva à separação do farelo (a parte mais grossa da farinha, e, portanto, geralmente menos apreciada), que em italiano se diz crusca. Refira-se, aliás, que a figura associada a esta academia é o tipo de peneira – em italiano frullone – que permite separar a farinha mais fina do farelo, como metáfora da necessidade de separar os bons e os maus usos da língua.
Crónica do autor publicada no jornal português Público de 5 de janeiro de 2021. Manteve-se a ortografia do original, anterior à norma atualmente em vigor.