Texto publicado no jornal Público em 20/06/2014, no qual o deputado português José Ribeiro e Castro, promotor do Manifesto 2014, expõe os critérios que levaram a identificar o testamento de D.Afonso II, datado de 27 de junho de 1214, como o documento que melhor assinala o aparecimento da língua portuguesa enquanto idioma independente, dotado de regras e convenções específicas. Mantém-se a ortografia original tanto no corpo do texto como no título.
Celebrar o aniversário da nossa língua é um enorme atrevimento. E fazê-lo numa data precisa envolve obviamente algum grau de arbitrariedade; e de escolha. É, na verdade, uma escolha: escolhemos 27 de Junho de 1214.
Não nos atrapalhemos, porém. Assumamos essa escolha dos 800 anos da língua portuguesa, que é a escolha de uma troika: nós, que subscrevemos o MANIFESTO 2014; Roberto Moreno, que inicialmente teve e apresentou esta ideia; e o rei D. Afonso II, que fez esse dia.
Quando festejamos um aniversário de alguém, não celebramos os anos – celebramos a pessoa. É a pessoa e não os anos que verdadeiramente festejamos. Assim é também aqui: ao celebrarmos oito séculos da língua, não celebramos os anos; festejamos, agradecemos e abraçamos a língua. É a língua portuguesa o objecto, o coração e o centro da nossa atenção.
Por outro lado, é evidente que uma língua não nasceu num dia só. Ninguém disse: “Ó língua, nasce!” A língua formou-se de um longo processo social e cultural – e, a certa altura, já era.
A data que escolhemos, 27 de Junho de 1214, é a data do Testamento de D. Afonso II, o terceiro Rei de Portugal, que é tido pelos especialistas como o mais antigo documento régio, conhecido, escrito em Português – e, portanto, o mais antigo texto escrito já na nossa língua ao mais alto nível de um Estado, precisamente o Estado que lhe deu o nome (Portugal) e, mais tarde, o estatuto.
É certo que são conhecidos outros textos anteriores ou coevos, que poderiam disputar a primazia: uma Notícia de Fiadores, datada de 1175; recentemente descoberto, um Auto de Partilhas dos irmãos Sanches, de 1192; a Notícia de Torto, em data incerta (1211? 1214? 1216?), contemporânea do Testamento de D. Afonso II; e alguns registos de poesia medieval, em cantigas de amor, de amigo ou de maldizer, cuja datação nem sempre é certa e uniforme, mas se situam na última década do século XII e no início do século XIII.
Porém, o Testamento de D. Afonso II, em 27 de Junho de 2014, cuja datação foi reverificada e está confirmada com todo o rigor, pode bem ser considerado, numa imagem, como a “carta de alforria” da nossa língua. Não pela sua exacta datação. Mas em razão de quatro factores: primeiro, já é considerado escrito em Português e não galaico-portucalense1; segundo, não é um texto particular, mas documento oficial; terceiro, não é documento oficial qualquer, mas um documento ao mais alto nível do Estado, um documento do soberano; e, quarto, é a primeira vez que tal acontece, arredando o latim, muito antes de, segundo aprendi, D. Diniz, em 1290, ter tornado oficial e obrigatório o curso e o uso do Português.
Ou seja, este Testamento de D. Afonso II é o marco que simboliza o momento em que a nossa língua se liberta e autonomiza das suas raízes e ascende ao mais nível do soberano: não é apenas uma língua com curso popular incerto; mas é já uma língua distinta, adoptada e usada pelo soberano e apta, portanto, a vir a tornar-se língua oficial. Assim foi, na verdade, com o Português: viria a ser assumida como língua oficial e, mais tarde, séculos volvidos, na esteira de uma longa e rica evolução, uma língua global, uma das mais importantes línguas globais contemporâneas: nada mais, nada menos do que a terceira língua europeia global, terceira língua também nas Américas, língua crescente em África, a terceira língua do Ocidente, uma língua em crescimento na internet e em todos os continentes, a quarta mais falada do mundo, a língua mais usada no Hemisfério Sul.
O escolhermos a data de 27 de Junho de 1214, não estamos a excluir nada. Pelo contrário, estamos a incluir tudo, a convocar tudo, a gerar uma saborosa oportunidade para conhecer e divulgar tudo isso. E não só conhecer; estimar!
Todos sabemos que nós, quando nascemos, já éramos antes. Já existíamos e já éramos nós mesmos antes do dia do nascimento; e até nos enternecemos e deliciamos com os pontapés por dentro da barriga da mãe de cada criança antes de nascer. Já é; e já mexe.
Comparando, digamos, pois, que esses outros textos da nossa língua, coevos ou anteriores – Notícia de Fiadores, Auto de Partilhas, Notícia do Torto, Cantigas de poesia trovadoresca –, são os “pontapés na barriga da mãe” da nossa língua em processo final de gestação, de afirmação e de ascensão.
Duas últimas notas quanto ao marcado simbolismo destas datas comemorativas.
Muitas vezes nós não as conhecemos sequer ao certo. Por exemplo, o 10 de Junho, assinalado por ser a data da morte de Camões, o nosso poeta maior, é num dia que ninguém sabe ao certo se foi o da sua morte – e, todavia, fizemos dele até feriado nacional e o Dia de Portugal. Mais: no Natal, a 25 de Dezembro, a única coisa que podemos ter por absolutamente certa é que Jesus Cristo não nasceu seguramente nesse dia – e, todavia, nele fixámos uma festividade universal. E também sabemos, quanto à natividade de Cristo, que não está correcto o ano que fixámos como primeiro ano, pois houve erro de datação – e, todavia, aí fundámos a referência universal da nossa era: a.C./d.C. Aqui, no Testamento de D. Afonso II não há erro, nem incerteza de datação. Foi mesmo nesse dia: 27 de Junho de 1214.
Podemos ainda, como Fernando Venâncio, numa interessante comunicação recente – “Originalidades da língua portuguesa” –, comentar a respeito destes oitocentos anos: «É engraçado como “relações públicas”, mas jamais um historiador da língua portuguesa afirmaria tal coisa.» Não vou disputar a afirmação como historiador, que não sou – ainda que pense que historiadores haverá que o poderão fazer. Mas isso não é sequer muito importante, já que, na História, o fundamental é que se a conheça em toda a sua realidade, independentemente do marco que elegemos – ou até nenhum. Portugal, também poderíamos discutir – e discutimos – se nasceu em 1128 (S. Mamede), ou 1143 (Zamora), ou 1171 (Manifestis Probatum) ou ali por 1140 (a batalha de Ourique, que ninguém sabe com absoluta certeza quando foi, onde foi e se foi; ou a altura em que D. Afonso Henriques começou a usar o título de Rei). E, seja como for, o facto é que Portugal nasceu e a necessidade é conhecermos – e estimarmos – todos esses tempos e momentos. Mas Fernando Venâncio aponta na direcção certa ao dizer que os 800 anos são engraçados como “relações públicas”. É isso mesmo: relações públicas, comunicação, comunicação global. A língua portuguesa, uma das mais importantes línguas globais contemporâneas e com mais elevado potencial presente e futuro, bem merece todas as acções de relações públicas, de afirmação e de valorização que possamos empreender.
Esse é o único propósito desta celebração: em torno de uma curiosidade, singular e ímpar – uma língua que faz anos, muitos anos –, comemorarmos, festejarmos e projectarmos mais a nossa língua portuguesa, estimarmos mais o Português, ganharmos mais forte consciência do fabuloso recurso global que é.
1 N.E. - Não é consensual, entre os historiadores da língua, que em 1214 o português já estivesse separado do galego. O testamento de D. Afonso II é, sem dúvida, um documento português, mas tal não o torna necessariamente um documento alheio ao galego, uma vez que ainda faz parte de um período formativo da língua que alguns autores chamam galego-português e outros português antigo. A adoção dos grafemas nh e lh no reinado de D. Afonso III (1210-1279) contribuiu sem dúvida para individualizar a língua escrita de Portugal, em confronto com as línguas escritas de outros reinos e regiões peninsulares, incluindo a Galiza. Mas é também tese defendida por especialistas em história da língua e linguística histórica que o português alcança clara identidade um pouco mais tarde, no século XV, quando se afirma a polarização política e cultural do reino de Portugal nas regiões centro e centro-sul do seu território. Sobre estas questões, consulte-se Ivo Castro, Introdução à História do Português (Lisboa, Edições Colibri, 2006, págs. 74-77), Esperança Cardeira, História do Português (Lisboa, Editorial Caminho, 2006, pág. 47) e Maria Teresa Brocardo, Tópicos da Língua Portuguesa (Lisboa, Edições Colibri, 2014, págs. 94, n. 68, e 108-113).
Artigo publicado no jornal Público em 20/06/2014