Texto do deputado português José Ribeiro e Castro sobre o significado das comemorações à volta dos 800 anos do primeiro documento oficial em português, o testamento de D. Afonso II.
Hoje, 27 de Junho, celebrar 800 anos da nossa língua é ganharmos mais forte consciência de que é um dos mais valiosos recursos estratégicos de Portugal e dos demais países da CPLP, senão mesmo o mais valioso de todos os nossos recursos estratégicos. Para ecoar um conceito que entrou em moda, diria: não há melhor diplomacia económica do que a língua.
Com os anos que já levo de trabalho e de porfia pela afirmação, pela salvaguarda e pela valorização do estatuto internacional da língua portuguesa, ainda hoje me surpreendo como ainda há tanta gente em Portugal que não se deu conta disso – e que não o vê, mesmo quando a gente aponta; e mostra.
De facto, as coisas levam tempo. Até o óbvio leva muito tempo.
De todos os países de língua portuguesa, o único que talvez se compreendesse que espontaneamente não valorizasse muito esse facto e esse recurso seria o Brasil. Porquê? Pela sua própria dimensão.
O Brasil e os 200 milhões de brasileiros não galgam muito quando passam do seu próprio espaço definido para um espaço comum habitualmente referenciado como de 250 milhões de pessoas. Mas, mesmo o Brasil, o maior de todos os lusófonos, entende o privilégio que é partilhar uma língua que lhe permite, e à sua economia, e à sua cultura, dispor de pontos de apoio, e de afinidade, e de cumplicidade, na Ásia, na Oceânia, em África e na Europa. Como é bom termos irmãos e patrícios em todo esse espaço por todos os continentes! É bom. E é poderoso.
Ora, se é assim para o Brasil, é-o, por maioria de razão, para todos os outros países da CPLP, assim como, em geral, para todos os lugares, espaços e comunidades onde se fala o Português, nalguma das suas variantes e declinações. Qualquer dos outros países da CPLP, seja Timor ou Angola, Portugal ou São Tomé, Cabo Verde, Guiné ou Moçambique, beneficia, através da língua portuguesa, não só de polos de proximidade e cumplicidade em todo o mundo, mas também de um salto gigantesco de escala, pulando de patamares de meras centenas de milhar ou de 1 milhão e picos, ou de 10 ou 20 milhões no seu espaço próprio, para um espaço comum de já quase 300 milhões de falantes. E, se a isto somarmos, como não podemos deixar de somar, outros polos poderosos como Macau, a sábia RAEM, registos nostálgicos e fortes como Goa ou Malaca, marcos teimosos como Olivença, ou todas as comunidades das dinâmicas diásporas de língua portuguesa, nomeadamente a brasileira, a portuguesa, a cabo-verdiana e a angolana, espalhadas pelo mundo, então os recursos naturais e implícitos dessa rede humana que fala Português – o que, para sermos chiques e modernos, designaríamos de networking lusófono – atinge proporções verdadeiramente fabulosas e inesgotáveis.
Tudo isso devemos à língua portuguesa. A possibilidade. A oportunidade. O recurso que é.
Podemos ver, ou não ver; entender, ou não entender; aproveitar, ou não aproveitar; valorizar, ou não valorizar; desenvolver, ou não desenvolver. Mas ele está aí.
Nem é só estar já calculado que, em Portugal, a língua representa 17% do PIB. É muito mais. Nos problemas do tempo de hoje, postos perante os desafios da globalização, há um facto indiscutível: quem dispõe de modo natural de uma língua que é falada em todo o mundo por quase 300 milhões de pessoas, enraizada e a crescer em todos os continentes, não pode queixar-se. Quem partilha o Português, só é pobre se for parvo. Quem tem uma língua assim, só é pobre e esquecido, periférico ou negligenciado, se for mesmo parvo – e absolutamente negligente. Só perde, se quiser. Só se atrasa, se desperdiçar uma ferramenta tão preciosa que não a tem só à mão: tem-na na sua boca, na sua língua, na sua mente, numa profunda proximidade e afinidade cultural com centenas de milhões de outros pelo mundo fora.
Tudo isso devemos à nossa língua, à língua nossa. Está aí: um poderoso legado do Povo e da História para que as elites o entendam.
Apesar de ser rei e soberano absoluto, D. Afonso II, em 27 de Junho de 1214, escreveu um texto que não é um Decreto. Ele obviamente não disse: "Decreto hoje fazer esta língua. E fica feita." Não, D. Afonso II escreveu apenas o seu testamento; limitou-se a usar uma língua que obviamente já existia e já era usada pelo seu povo, antes de ele a usar também. O simbolismo deste momento e desse marco é que é a primeira vez que isso foi feito. Nunca antes dele, um Rei, um Estado, um soberano usara a nossa língua, escrevera oficialmente a nossa língua.
Uma língua que, hoje, está no mundo inteiro.
Uma língua que é cinema, rádio e televisão; que é audiovisual e multimédia; que é jornal, literatura, conto, romance ou poesia; que é teatro e também ciência; que é narrativa e fantasia, inovação; que é investigação e tecnologia; que é descoberta; que é discurso, lei e tratado, Constituição; que é comércio e negócio, acta e contrato; que é oração, religião, filosofia; que é canção, hino, fado, samba e semba, morna e bossa – uma língua total, uma língua plena, uma língua rica, vibrante, poderosa, cosmopolita e mundial.
As línguas não nascem assim, num só dia – é verdade. Às vezes, morrem; mas, em rigor, não nascem. Formam-se.
As línguas vivas, as que não se deixam estiolar e morrer, estão sempre a nascer, todos os dias. E, nisso, também se parecem com as pessoas que, enquanto povos e humanidade, estamos sempre nascer.
Esta festa dos 800 anos também é a festa dessa vitalidade, imorredoira e crescente, da nossa língua comum de todos os falantes de Português: o Português, língua da Europa; o Português, língua das Américas; o Português, língua de África; o Português, língua do Oriente; o Português, língua do mundo.
in jornal Público de 27 de junho de 2014. Escrito conforme a antiga ortografia, a seguida pelo jornal português.