«Portugal tem 10 milhões de habitantes – mas o Brasil tem 200 milhões. Só por arrogância ou por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras. O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o Acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente.» Artigo publicado pelo diretor do semanário Sol, na sua coluna A sério.
Quando o Acordo Ortográfico foi assinado, em 1990, numa cerimónia no Palácio da Ajuda, o jornalista Francisco Belard escreveu uma notícia com muita graça na qual utilizava um grande número de palavras que iriam mudar de ortografia.
A ideia era brilhante e o resultado era expressivo: a notícia causava enorme estranheza, revelando-se mesmo de muito difícil leitura.
Quem a lesse não precisava de mais nada para, naquele preciso momento, se tornar um adversário acérrimo do Acordo Ortográfico.
E muitos intelectuais da época assumiram a mesma posição, uns por conservadorismo, outros — talvez — pelo facto de o Acordo resultar de uma iniciativa de Cavaco Silva e ser negociado por Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura. A onda era essa — e convenci-me de que o meu pai (autor de uma História da Literatura Portuguesa) também teria a mesma atitude.
Para mim, isso era líquido.
Foi, pois, com a maior surpresa que, quando o assunto veio à baila, o ouvi dizer:
— A oposição ao Acordo Ortográfico é um enorme disparate. O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… Tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. Perante isso, não tem qualquer interesse discutir chinesices, como a escrita desta ou daquela palavra.
Esta posição, assumida com a maior convicção, mudou o meu modo de olhar para o Acordo.
Senti-me mesmo um pouco envergonhado por ter defendido a posição contrária. É óbvio que não entrarei em discussões técnicas sobre este assunto com Vasco Graça Moura ou qualquer outro especialista.
Eles saberão certamente muito mais do que eu.
Só que a questão essencial não é essa.
O essencial não é discutir o resultado — é admitir que são úteis todos os esforços que se façam no sentido de os países onde a língua oficial é o português aproximarem as suas grafias.
E são especialmente importantes para nós, portugueses.
Portugal tem 10 milhões de habitantes — mas o Brasil tem 200 milhões.
Só por arrogância ou por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras.
O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o Acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente.
O que vale aqui é o princípio.
É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo.
Alegar razões de "consciência" para rejeitar o Acordo é simplesmente ridículo: a ortografia não envolve princípios nem valores.
Não é como o aborto, por exemplo, que choca com o valor da vida.
A escrita é uma convenção — e mexe essencialmente com o hábito.
Por isso, a resistência à mudança é sobretudo um problema de conservadorismo. Claro que ser conservador não é nenhum crime.
Mas não deixa de ser curioso que muitos dos opositores ao Acordo sejam intelectuais de esquerda, em princípio “progressistas”.
Ou será que, também nesta área, a esquerda se está a tornar conservadora?
Um conservadorismo, adiante-se, em estado quase puro, pois antes de mais diz respeito a hábitos visuais.
Estranhamos ver “aspecto” escrito sem “c”.
Mas os nossos avós também estranharam na época ver “farmácia” escrita com com “f” — e nós estranhamos vê-la escrita com “ph” nas fachadas antigas.
E os nossos filhos ou netos que aprenderem na escola a escrever já com a nova ortografia olharão com estranheza para este texto que o leitor está a ler.
Porque a escrita, repito, é uma convenção e um hábito.
A verdade é que, quando falamos em defender a «língua de Camões», esquecemo-nos de que o poeta assinava Luiz de Camoëns.
(…)
In semanário Sol de 17 de fevereiro de 2012