Apesar das aparências, as questões da língua portuguesa não deixam toda a gente insensível. Na quarta-feira, veio ter comigo um camarada da «Única» que, rindo, me mostrou o modo como na "Focus" se escreve slogan: slôgane. Disse-lhe que já tinha visto o barbarismo, ou a barbaridade, pelo menos uma vez. «E já sabes do ferribote?», replicou. Não, respondi. «Vem no dicionário.»
Não foi difícil adivinhar em que dicionário. Lá está, pág. 1728 do volume I: «ferribote .... s. m. (do ingl. ferryboat). Barco de transporte de pessoas, veículos e mesmo comboios, em pequenas distâncias» (até quantas milhas?, pensei). Mas neste passo fiquei sobressaltado, tremendo - num dia já «com carros» - pelo futuro da CP: os comboios já não seriam veículos? Fui a correr à pág. 875 do mesmo volume e respirei aliviado; comboio ainda era «um «meio de transporte colectivo interurbano que consiste num veículo (...)». Agora restava-me rezar para que os ferribotes não ousassem transportar animais (mesmo «de companhia»)e não se aventurassem em médias distâncias. Lá ia por água abaixo o trabalho do lexicógrafo.
Com coisas destas, alguém da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa continua a mostrar que não teme o ridículo. É o fado. «Quando ele era rapazote/ levou consigo no ferribote/ um varino atrevidote.» Rima, mas não é verdade. É apenas tolice e invenção, como as que foram pagas pelo pobre contribuinte através dos Ministérios que financiaram o trabalhão. E eu que pensava hoje escrever sobre coisas mais sérias, esquecendo-me de que o jornalista (tal como outras profissões) tem de prestar atenção aos factos, por mais brutais que sejam.
Outro dia (23/8/03), o meu amigo Pedro d'Anunciação lembrou, na sua crónica do «Actual», «o horror de recepcionar» e outros pequenos e médios horrores das «linguagens televisivas». Eu próprio já tinha tentado elencar, como agora se diz, alguns vocábulos a meu ver aberrantes, desnecessários ou... nem sei como qualificá-los sem insultar ninguém. O recepcionar, o direccionar e o reposicionar fazem parte da já extensa lista de verbos que nos querem impingir, com apoio ou passividade da Imprensa, da Universidade, do poder central, do poder local, do poder audiovisual e até, receio, do poder deste jornal. Essas manias só prejudicam a adopção, tantas vezes necessária, de novas palavras que façam realmente falta para descrever novas realidades (ou até só para variar...).
Dessas, o Pedro citava uma que, infelizmente para muitos, passou a ter sentido: deslocalização (tal como, uns anos antes de ser transmitida para a China a administração de Macau, se passou a falar em localização dos quadros do território). Mas em muitos outros casos não se vê o motivo por que os inteligentes que nos governam põem em curso tantas originalidades. Não poderiam ocupar o tempo a trabalhar a bem da nação (ou, se isso é pedir muito, da sua bolsa e da sua vida)? Uma das linhas de ataque da tolice é quando querem aportuguesar tudo a torto e a direito. Daqui sugiro que além de tontos sejam coerentes e escrevam autedore, em vez de outdoor, jetesete em vez de jet set, escrine em vez de screen e sofetuere em vez de software. Ou aplica-se só a palavras de línguas latinas a necessidade (acham eles) de aportuguesar à bruta? Perde-se em inteligibilidade, mas faz-se a vontade à rapaziada. Repare-se que não faço demagogia: os exemplos acima, que a egrégia Academia pode não ter ainda aportuguesado (prometo confirmar quando for de férias), são apenas de termos encontrados nos media.
O EXPRESSO, por exemplo, fala de video-screens no mesmo texto em que se escreve ecrã (2/8/03) - aparente aversão às palavras francesas, incluindo as bem conhecidas por milhões de cinéfilos... mesmo portugueses. Vou-me rir quando aportuguesarem travelling, zoom, set, and so on, und so weiter, etc. Sem falar nos chips, nos bytes e no boom (todos num texto do EXPRESSO, também de 2/8/03). E o ranking? E o mail? E as majors? E o green? E o shot? E o cut? E a shortlist? E o workshop? E o making of? E a fast food? Tudo ovelhas a devorar pelos lobos inquisitoriais dos aportuguesamentos selvagens, capazes de inventar o fastefude.Importam-se de parar meio minuto para pensar? Quando havia liberdade de importar palavras de outras línguas (e, com a abertura do mercado a praticamente tudo, é bizarro que não a haja agora), o cidadão que só pôde aprender uma língua estrangeira, o português (não se iludam, o português começa a ser para muitos de nós uma língua quase estrangeira), ficava ao menos na posse de umas dezenas de palavras de outras línguas.
Por exemplo, na tauromaquia, diestro, ruedo, arena (não, esta palavra não é portuguesa, é latina - ou, se quiserem, espanhola; em verdadeiro português escrever-se-ia areia). Na música, scherzo, staccato, vibrato, adagio, tremolo e tantas outras (então, patrioteiros, escrevam obra em vez de ópera!...). No escritório, o dossier. Na economia, inúmeras (mas, como costumam ser inglesas, são perdoadas...).
Nos países mais próximos (com a frequente excepção da Espanha, pouco dada a línguas exóticas), as regras são mais liberais. Os franceses até escrevem week-end (não tenho nada contra o fim-de-semana) e os italianos killer. Onde a França foi dura, sabe-se lá porquê, foi com os termos informáticos. Mas não afrancesou software; substituiu-o por «logiciel» e publicou uma lista oficial de equivalências, conforme à tradição nacional-autoritária vinda dos jacobinos, de Napoleão e da III República. Resta-nos esperar que o «Executivo de Durão» preste mais atenção... à vida para além do Orçamento. Eu volto noutra semana, com mais novelos da vida.
Cf. Vocábulos da informática + Estrangeirismos já existente em português
N.E. – Do mesmo autor, Cf. Pérolas da informação e Diciopatia bovina
revista "Actual" do "Expresso"