Artigo do governante português que negociou o Acordo Ortográfico e o subscreveu, no dia 16 de dezembro de 1990. Publicado no semanário Sol de 10/02/2012.
«O Reino de Portugal e dos Algarves devide-se em Círculos Judiciaes: estes em Comarcas; as Comarcas em Julgados; e os Julgados em Freguezias. Quando uma Freguezia não chegar a ter cem vizinhos, ficará reunida á mais próxima.Haverá em Lisboa um Supremo tribunal de Justiça com jurisdicção em todo o Reino.Uma Lei especial marcará as suas atribuições» (Excerto do Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, sobre a Reforma das Justiças).
Era assim que se escrevia no século XIX. A língua mudou e a Pátria, obviamente, não acabou.
O meu nome de família escrevia-se, ainda há poucas décadas, Sant’Anna. Assim o escrevia o meu avô e ainda o escreveu a minha mãe. Passou-se a escrever de modo simplificado, de acordo com a fonia, e a família continuou a ser a mesma. Já foram dados muitos exemplos e travadas todas as polémicas sobre casos concretos. Agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa). Mas também ‘caso’ (de Justiça) é igual é igual a ‘caso’ (do verbo casar) e ‘falta’ (no desporto) é igual a ‘falta’ (de carência). E nem vale a pena falar do que os nossos avós tiveram de se habituar, para deixar de escrever ‘pharmácia’, palavra com tantas tradições.
Calculam a razão destas palavras, hoje. Sim, decorrem do facto de Vasco Graça Moura, nomeado pelo Governo presidente da fundação das Descobertas, ter dado ordem para os serviços da Fundação não respeitarem as normas do Acordo Ortográfico.
Com a estima e o respeito devidos a Vasco Graça Moura, devo sublinhar que me custa muito a crer que não tenha informado previamente o Governo deste seu propósito antes da nomeação se concretizar. No plano ético, e com a devida vénia, não tenho qualquer dúvida de que esse era o procedimento obrigatório.
O processo de adopção do Acordo Ortográfico tem estado a decorrer com uma normalidade superior à que eu esperava – e a comunicação social tem dado um importante contributo nesse processo.
Muitos órgãos da imprensa escrita já assumiram essa opção, mas os articulistas que não o queiram fazer também não são obrigados a isso.
Ora, essa exigível liberdade tem feito parte da referida naturalidade. Eu não escrevo os meus textos com a nova grafia porque ainda não o decidi fazer.
Está no plano da liberdade individual. Mas não dou nenhuma ordem a uma instituição que dirijo — que é de direito privado mas tem algum relacionamento com o Governo e com entidades públicas — para afrontar a posição oficial do Estado português.
Só poderia admitir qualquer atitude desse tipo se os poderes públicos alguma vez quisessem ‘fazer mal’ a essa entidade. Não foi o caso, que se saiba, no CCB.
Cavaco Silva incumbiu-me de inaugurar o CCB e de assinar o Acordo
Por coincidência, tenho muito a ver com o Acordo Ortográfico, com o CCB e com a Fundação das Descobertas.
Para os que não sabem, quando há 21 anos, no início de Janeiro de 1990, Cavaco Silva me convidou para secretário de Estado da Cultura, foram essas, precisamente, as duas principais tarefas de que me encarregou: assegurar que o CCB estivesse pronto a tempo de receber a 1.ª presidência portuguesa das Comunidades Europeias, a 1 de Janeiro de 1992, e negociar e assinar o Acordo Ortográfico.
A este propósito, Cavaco Silva foi peremptório: em seu entender, o Acordo Ortográfico era essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um estatuto equivalente ao do latim. Cavaco Silva fez-me notar que, nos leitorados das universidades um pouco por todo o mundo, nas traduções em organizações internacionais e em várias outras instâncias, era cada vez mais utilizado o português conforme escrito e falado no Brasil.
Por isso se trabalhou muito, por isso pensei muito no que o então primeiro-ministro me tinha dito. E não tenho dúvidas de que tinha toda a razão.
Nem todos os Estados-membros da CPLP ratificaram ainda o Acordo? Pois não. Mas entre os que já o fizeram encontra-se o país que se previa viesse a ter mais resistências: exactamente o Brasil.
Recordo-me bem da incerteza, até à última hora, sobre a vinda de um representante do Brasil à cerimónia de assinatura, em Outubro de 1990, no Palácio da Ajuda. Acabou por vir o então ministro da Educação, não escondendo a atitude politicamente distanciada daquele país irmão.
Fiz, tempos depois, uma visita oficial ao Brasil, e falei no Congresso e na Academia Brasileira de Letras. E recordo-me bem de como o ambiente era reservado ou até hostil.
Acordo Ortográfico é do mais alto interesse nacional
Não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por toda a comunidade que se exprime oficialmente em português.Há muitas pessoas que se esquecem do esforço que outros países têm feito para levar outros países nossos irmãos para as respectivas esferas de influência cultural. Estadistas e governantes de formação e ideologia distintas, como Cavaco Silva e Mário Soares, tiveram a noção profunda dessa relevância.
Portugal já perdeu muito tempo, muitas oportunidades, muito dinheiro, muita influência, por se envolver em polémicas estéreis. Nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui.
Temos de estar orgulhosos por falarmos a mesma língua — que é a língua oficial de centenas de milhões de pessoas, tendo estado uma escassa mão-cheia de milhões na origem dessa epopeia cultural.
Cavaco Silva tem aqui uma excelente oportunidade de vincar o sentido do interesse nacional e de demonstrar a sua solidariedade com o Governo. Ainda por cima, estando em causa a atitude de um seu conhecido e ilustre apoiante.
A matéria respeita a Portugal e não a um só Governo. Muitos trabalharam para que fosse possível. No que se refere ao Governo que liderei, recordo uma importante cimeira da CPLP em que se deu mais um passo significativo, e na qual participaram Jorge Sampaio, então Presidente, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, António Monteiro. Mas António Guterres, Durão Barroso, José Sócrates e tantos outros também lutaram por esta causa.
Podia dar outros testemunhos do modo como se faz sentir a importância de pertencermos a uma comunidade que partilha a mesma língua oficial. Mas não cabem neste espaço.
Portugal continua a mesma Pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do decreto citado no início deste texto. A língua portuguesa continuará a ser a ‘língua de Camões’, mas também a de todos os outros poetas que se exprimiram, exprimem e exprimirão em português.
Artigo publicado no semanário Sol de 10 de fevereiro de 2012