Limitando a nossa consulta ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (edição brasileira), vemos que:
1. O verbo rastrear é transitivo directo e tem duas acepções:
a) «seguir o rastro ou a pista de (caça, suspeito, fugitivo etc.); rastejar»;
b) «fazer investigação a respeito de; inquirir, investigar, rastejar».
2. O verbo despistar é também transitivo directo, podendo ser usado pronominalmente; significa:
a) «fazer perder ou perder a pista»;
b) «(em sentido figurado) fazer perder ou perder a orientação; desorientar(-se), desnortear(-se)»;
c) «(em sentido figurado) iludir a vigilância de»;
d) «(sentido figurado) ludibriar, anulando desconfianças»;
e) «(em Portugal) deslizar (o veículo) de lado, desgovernado; derrapar.»
De notar que o significado (b) de rastrear é uma extensão metafórica de (a), uma vez que investigar, por exemplo, uma doença é equivalente a seguir-lhe o rasto. Verifica-se, porém, que o Dicionário Houaiss não acolhe despistar (nem despiste) no sentido que é descrito pelo consulente. Outro dicionário brasileiro, o Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, também não regista tal significado.
Em dicionários publicados em Portugal é que encontramos o verbo despistar definido como «procurar metodicamente e descobrir casos de doença através de uma investigação sistemática, essencialmente através da aplicação de testes, na população, de um grupo de indivíduos» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa; ver também Dicionário Verbo de Língua Portuguesa). Verifica-se assim que, pelo menos em Portugal, tem sido possível usar despistar como sinónimo de rastrear. E em relação aos substantivos correspondentes, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa explicita mesmo a sinonímia, ao indicar que rastreio é vocábulo equivalente de despistagem (que tem a variante despiste)1 quando significa «investigação de sinais característicos de uma doença com o fim de a tratar». Qual é então a relação destas formas e deste significado com os apresentados em 2.(a-e)?
Os dicionários consultados são omissos quanto à origem destas acepções de despistar e despistagem, mas pode-se supor que que elas terão surgido por decalque do francês dépister, que significa «encontrar alguém seguindo-lhe a pista». Note-se que o Dicionário Houaiss, numa nota etimológica, descreve a formação de despistar como um derivado (des- + pista + -ar), por influência do francês dépister, «fazer perder a pista», tal como era usado numa atestação de 1828. Pelos vistos a influência sofrida foi mais prolongada e terá seguido a deriva semântica da palavra francesa, já que, por exemplo, o Robert, conhecido dicionário de francês, regista dépister apenas nas acepções de «encontrar alguém...» (já referida) e de «descobrir o que está pouco à vista, o que se dissimula», as quais também se aplicam a doenças; neste caso, o substantivo que designa a acção deste verbo é... dépistage, a qual, com um pequeno esforço de aportuguesamento, vem a ser o mesmo que despistagem.
Cabe-me agora dizer que não me vai ser por enquanto possível explicar como em francês se passou (se é que se passou) de «fazer perder a pista» a «encontrar, descobrir, revelar», por falta de maior suporte bibliográfico. Observe-se, de qualquer modo, que não é raro que uma palavra comece a significar o contrário do que se queria dizer com ela: basta lembrar o conhecidíssimo e condenadíssimo caso de despoletar.
Em conclusão, tudo aponta para que o emprego de despistar e despistagem como sinónimos de rastrear e rastreio seja um galicismo. Será de condenar? Sim, se quisermos uma linguagem médica clara e rigorosa, sem duplicação de termos. Mas não é verdade que, com a actual invasão de anglicismos, até os galicismos nos deixam nostálgicos e voltam a seduzir-nos?
1 Despistagem e despiste não são sinónimos exactos, porque só despiste pode ocorrer com automóvel (não é aceitável «despistagem de automóvel»).