É preciso não confundir a voz passiva (a passiva sintáctica)1 com as propriedades semânticas do verbo e dos elementos (argumentos) que este seleccciona. Por outras palavras, a oposiçâo voz activa/voz passiva não se confunde com os papéis semânticos dos argumentos verbais que depois serão realizados na frase como sujeito, complemento directo, complemento indirecto, etc.
A voz passiva é uma construção verbal em que, entre outros aspectos, há uma troca de funções sintácticas entre os elementos que um verbo transitivo selecciona: por exemplo, o verbo comer é usado na voz activa com um sujeito, que é o agente da acção, e um complemento directo que corresponde ao paciente da acção: «o rapaz comeu o bolo»; na voz passiva, o paciente torna-se sujeito, e o agente pode ser omitido ou então ser realizado como complemento agente da passiva: «o bolo foi comido (pelo rapaz)».
Relativamente a receber e ganhar, trata-se de verbos que na voz activa seleccionam para sujeito uma expressão nominal que desempenha o papel temático (ou semântico) de alvo, o qual «designa a entidade para a qual algo foi transferido, num sentido locativo ou não (ver Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, pág. 190). O verbo levar tem normalmente, na voz activa, um sujeito que corresponde a um agente («ela levou a criança»), mas em «levar uma surra» e outras expressões feitas semelhantes («levar tareia/pontapés») também se associa ao sujeito o papel de alvo.2
Finalmente, não tenho referência de gramáticos brasileiros que, num quadro tradicional, abordem a questão dos papéis temáticos. Por exemplo, Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, pág. 411 e ss.) refere «termos argumentais», mas não propõe uma análise de acordo com a teoria dos papéis temáticos. De qualquer modo, estou certo de que obras brasileiras concebidas no âmbito da investigação semântica e sintáctica contemporânea dedicarão algumas páginas ao assunto.
1 Termo usado em Mateus, M. H. M. et al. 2003, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003 (pág. 521), obra em que também se consideram outros tipos de construção passva: passiva de -se («os artigos publicaram-se no último número da revista») e a passiva adjectival, resultativa ou de estado («os artigos estão publicados no último número da revista»).
2 Sobre outros papéis temáticos, ver Mateus et al. 2003, págs. 183-190.