«Ao pé da letra» e «à letra» são expressões idiomáticas que significam, não somente, «literalmente», como a consulente indicou, mas também «rigorosamente, estritamente», ou ainda, dito de uma forma mais familiar e popular, «à risca» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, Lisboa, Sá da Costa, 1990, p. 225).
Sendo uma expressão idiomática (idiomático, adj. «adaptação formal do gr. idiomatikós, «particular, especial», José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol. III, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 258), «própria de um idioma», ao pé da letra tem um estatuto de especificidade, de registo particular e especial da nossa língua, pois é uma expressão «que funciona como um todo e que normalmente não pode ser entendida de forma literal» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004).
Sobre a especificidade das expressões idiomáticas, importa lembrar o que nos diz Lindley Cintra sobre o assunto: «formas ou expressões que se fixaram [em todas as línguas] e são correntemente empregadas num sentido que se afasta muito do literal, o que as torna dificilmente, se é que não totalmente impossíveis de serem traduzidas literalmente. […] A sua origem, o processo de associação de ideias que está na sua base está geralmente ligado a um processo de transposição de sentido, de transposição de um sentido literal por um figurado, metafórico, que raramente é possível reconstituir com rigor. Expressões que nasceram num momento particularmente criativo da linguagem em que a função emotiva ou expressiva predominava sobre as outras foram especialmente bem recebidas, aceites e expandidas com um total ou parcial esquecimento do seu valor literal. Desprenderam-se desse valor e funcionam como unidades» (Lindley Cintra, «Prefácio», Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, ob. cit., p. VII).
Tratando-se de expressões que «não pode[m] ser entendida[s] de forma literal», portanto, cujo sentido é figurado, é natural que o seu valor se retire a partir da riqueza das suas imagens e da originalidade das suas metáforas.
Relativamente à possibilidade de presença de catacrese na expressão «ao pé da letra», não podemos deixar de recordar que esse recurso estilístico faz parte — tal como a metáfora, a alegoria, a sinédoque, a metonímia, e outras — das figuras (ou tropos) semânticas. Se tivermos em conta que «catacrese é uma figura de retórica na qual se alarga o significado de uma palavra por analogia com o seu sentido primitivo (exemplo: as pernas da mesa, os dentes do serrote)», apercebemo-nos de que, a par da metáfora, não é ilógica a perspectiva apresentada pela consulente.
Sobre a classificação morfológica, e tendo em conta a proposta da consulente — a de locução adverbial, se a confrontarmos com a definição apresentada por Cunha e Cintra — «denonima-se LOCUÇÃO ADVERBIAL o conjunto de duas ou mais palavras que funciona como advérbio. De regra, as LOCUÇÕES ADVERBIAIS formam-se da associação de uma preposição com um substantivo, com um adjectivo ou com um advérbio, como, por exemplo, de onde em onde, em silêncio, de má vontade, às pressas, passo a passo, gota a gota, em vão, à toa, ao léu, às avessas, às claras, de quando em quando» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. p. 540-541) —, verificamos que a expressão «ao pé da letra» preenche os requisitos da locução adverbial.