DÚVIDAS

Análise sintáctica de frase num poema de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida, que não consegui solucionar mesmo após troca de impressões com colegas. Como se dividem e classificam as orações da seguinte frase, extraída de um verso contido num poema do heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro: «Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso»?

Obrigada pela atenção.

Resposta

A poesia não é o tipo de texto mais propício à identificação de estruturas gramaticalmente prototípicas, uma vez que ele obedece a, ou tem subjacente, uma criatividade literária ou artística, que justifica, em nome do estilo, situações de fuga à lógica gramatical que noutras situações seriam indesculpáveis. Vejam-se, por exemplo, as frases de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego: «Quantos sou? Quem é eu?»

No entanto, no exemplo em apreço, estamos perante uma estrutura que, pelo menos em parte, ocorre com alguma frequência em frases como «Se te digo isto, não é porque te queira mal, mas porque sou teu amigo».

Tentemos, então, a análise dos versos em causa:

«Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/mas porque a amo, e amo-a por isso.»

Oração subordinante: «não é porque saiba o que ela é»

Porém, esta subordinante é algo complexa: efectivamente, estamos perante uma oração com um verbo copulativo, na qual o predicativo do sujeito é uma oração causal, cujo verbo, por sua vez, se constrói com uma completiva, que, neste caso, é uma relativa sem antecedente. Assim, a oração «não é porque saiba o que ela é» tem a seguinte estrutura interna:

      Subordinante – «não é»
      Predicativo do sujeito – «porque saiba»
      Subordinada substantiva completiva – «o que ela é»

Esta oração subordinante está coordenada a outra – «mas porque a amo» –, que também tem a sua complexidade, uma vez que a oração coordenada tem o verbo elidido, tendo o predicativo do sujeito expresso: «mas [é] porque a amo». Note-se o paralelismo, ainda que contrastivo, entre esta estrutura coordenada: «Não é por isto, mas é por aquilo»… Toda ela tem associada, ainda, uma copulativa parentética que serve de comentário-síntese: «e amo-a por isso». Esta copulativa parentética retoma, em quiasmo (estrutura do tipo xy-yx), as duas coordenadas, estando a segunda representada pelo demonstrativo isso. Veja-se:

Não é porque saiba o que ela é  –  mas porque a amo
                  E amo-a                 –        por isso

Subordinada condicional: «Se falo na Natureza»

Esta subordinada condicional associa ao valor de condição um valor temporal, paradoxalmente abstracto, ou seja, é um valor temporal impregnado de uma boa dose de intemporalidade. O se poderia, com efeito, ser substituído por quando, ou por sempre que, ou, pura e simplesmente, não estar presente: «Falo na Natureza não porque saiba o que ela é,/mas porque a amo, e amo-a por isso.»

Sintetizando:

Oração subordinante: «não é porque saiba o que ela é»
    Subordinante – «não é»
    Subordinada/predicativo do sujeito – «porque saiba»
Subordinada completiva ligada ao verbo saber – «o que ela é»

Subordinada condicional (de valor temporal): «se falo na natureza»

Coordenada adversativa ligada à subordinante: «mas porque a amo»
    Subordinante – elipse do verbo (é)
    Subordinada/predicativo do sujeito – «porque a amo»

Coordenada copulativa parentética (que tem como primeiro bloco coordenado as duas coordenadas adversativas) – «e amo-a por isso»

Note-se ainda o valor hipotético da causal predicativo do sujeito, realçado pelo uso do conjuntivo saiba.

P. S.: Agradeço à professora Gabriela Matos a ajuda na interpretação sintáctica desta frase.

Cf.: Fernando Pessoa: 10 das melhores frases do génio

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