DÚVIDAS

A pronúncia correcta de coelho

No vosso site existem várias abordagens sobre a pronúncia correcta de coelho, mas a resposta não é clara.

Para F. V. P. da Fonseca, a pronúncia correcta é “coâilho”, sendo “coêlho” um regionalismo (alentejano). Mas para José Neves Henriques sucede o contrário: “coêlho” é o correcto, e “coeilho”, um regionalismo (lisboeta). Não sei se há diferença entre as fonetizações “coâilho” e “coeilho”, utilizadas nos textos (teistos?).

Seria possível uma terceira pessoa desempatar?

A pronúncia de cerveja será similar, suponho. Outra questão que gostava de colocar é: se a língua evolui para, por exemplo, se dizer “cerveija”, porque é que, em determinada altura, não se passou a grafar ‘ei’? Na escola, aprendi os valores fonéticos das vogais, sendo estas fundamentalmente “abertas” ou “fechadas”, mas creio que não abordámos casos em que uma vogal se lê como se se tratasse de um ditongo.

Resposta

Creio que os dez anos do Ciberdúvidas, ainda há pouco celebrados, já permitem ver que a norma evolui de facto. A forma com a vogal fechada, isto é, "coêlho", era — e ainda é — considerada como mais correcta, porque era esse o timbre vocálico mais antigo. No entanto, em muitos dialectos portugueses, há a tendência para ditongar essa vogal como um "âi" antes de uma consoante palatal: "coâilho" (coelho), "tâinho" (tenho), "cervâija" (cerveja), "fâicha" (fecha). Na fala lisboeta, que é tida como padrão (por muito controversa que seja esta perspectiva), o referido ditongo passa outra a vez a vogal, mas desta vez como o primeiro "â" de tâmara; temos assim "coâlho" e "tânho".

Que juízo normativo se pode aqui produzir? Durante muito procurou-se identificar uma única pronúncia correcta para cada palavra. Contudo, a expansão das línguas europeias acarretou a diversidade no espaço e a afirmação de normas locais. Por exemplo, no espaço de língua inglesa, contrapôs-se à norma da corte de Londres a norma criada nos Estados Unidos; no Brasil, nasceu um padrão linguístico que se diferenciava do padrão de Portugal. A consciência destes factos levou também a encarar a variação de outra maneira e a falar em normas locais, respeitando-se mais as características dialectais. Esta situação é notória no domínio da pronúncia, e em países como o Reino Unido já se admitem locutores que, dentro de certos limites, muitas vezes não explícitos, mantêm a pronúncia regional.

Actualmente em Portugal, pode-se dizer com alguma segurança que a pronúncia com e fechado, "coêlho", é a mais marcada, ou seja, é uma pronúncia tida como conservadora e como não característica do padrão linguístico. Mas em 1911, quando se avançou com a reforma ortográfica que procurou dar coerência à escrita do português, seguiram-se critérios etimológicos e de prestígio  dialectal que impediram formas como "coailho" e "cervaija" de chegarem à grafia.

Tudo isto não significa que hoje tenhamos de ver a pronúncia mais moderna como um sinal de irremediável decadência da língua, nem que, porque é moderna, a tenhamos de adoptar cegamente. Se a intercompreensão é possível, se toda gente percebe que "coêlho", "coâilho" e "coâlho" são todas maneiras de pronunciar a mesma palavra, qual é a necessidade de escolher apenas uma como correcta? Considero, portanto, que estamos numa fase de transição, e que as três pronúncias de coelho são por enquanto aceitáveis.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa