O verso a que a consulente se refere — «Que brandura é de amor mais certo arreio» — (o 3.º verso da 89.ª estrofe do canto VI d’Os Lusíadas, de Camões) faz parte do discurso da «belíssima» ninfa Oritia1 (uma das ninfas escolhidas por Vénus para seduzir e prender os fortes ventos que fustigavam as naus portuguesas, provocando uma terrível tempestade, o que levou Vasco da Gama a pedir auxílio a Deus), em que esta se dirige, zangada e com ressentimento, a Bóreas2 (que aqui personifica um dos ventos mais fortes), apesar do amor que sentia por ele («que do peito mais queria»).
Trata-se, portanto, de um discurso em que sobressai a crítica à atitude de Bóreas para com os portugueses, em que Oritia o caracteriza como feroz — «fero Boreas» —, evidenciando a violência e de crueldade do seu a{#c|}to, marcas de personalidade que não se adequam ao sentimento brando do amor. Com este discurso, Oritia acusa Bóreas de nunca a ter amado, pois ela considera que só ama quem é calmo/brando, condição essencial para que também possa ser digno do seu amor. Por isso lhe diz que «não convém furor a firme amante», alertando-o para o risco que ele corre, pois a fúria e a violência que o caracterizam tornam-no desagradável e inconveniente aos olhos de Oritia, razão pela qual o ameaça de este a poder vir a perder, uma vez que o amor que ela tem se transformará em medo: «Não esperes de mi, daqui em diante,/ Que possa mais amar-te, mas temer-te;/ Que amor contigo em medo se converte».
Este discurso tem, portanto, o objectivo de intimidar Bóreas, fazendo-o sentir-se mal com a violência dos seus ventos usada com os portugueses, para o levar a abandonar o seu propósito de impedir as naus de continuarem a sua viagem.
Sentiu-se necessidade de se explicar em pormenor o conteúdo desta fala de Oritia para que se torne fácil a identificação dos recursos estilísticos presentes no verso indicado. Portanto, em primeiro lugar, demo-nos conta da presença da anástrofe (ou inversão), pois a ordem da frase está alterada, o que dificulta a sua compreensão. Repare-se que a ordem natural seria «Que brandura é mais certo arreio de amor» ou «Que mais certo arreio de amor é brandura», ou seja, a melhor qualidade (adorno, enfeite) do amor é a brandura.
Ora, a associação de «brandura» a «arreio», comparando indirectamente esta qualidade a um objecto de enfeite, leva-nos a identificar um caso de metáfora (brandura = (mais certo) arreio (de amor)».
A partir da análise feita, decerto que compreendeu o sentido da palavra arreio, como adorno ou enfeite, palavra também vulgarmente utilizada para designar o «conjunto de peças com que se preparam os animais de sela ou de tracção» (Grande Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010).
1 Oritia «é uma das filhas de Erectreu, rei de Atenas. Foi raptada por Bóreas» (Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Difel, 1992).
2 Bóreas: deus do Vento do Norte. Pertence à raça dos Titãs, os seres qe personificam as forças elementares da natureza. Enre outros actos violentos, é-lhe atribuído o rapto de Oritia, filha do rei de Atenas Erectreu, quando aquela brincava com as suas companheiras nas margens do Ilisso. Levou-a para a Trácia, onde ela lhe deu dois filhos, Cális e Zetes. (idem).