DÚVIDAS

A concordância verbal com demonstrativos

Gostaria de ter sua opinião sobre a correção que fiz nestas duas frases de uma crônica que estou revisando: 1) «Waldir Luz, um verdadeiro herói que deixa naqueles que o "conhecemos"a crença de que ainda vale a pena acreditar na humanidade.»Não concordei com o emprego do tempo verbal "conhecemos" nesta frase. No meu ponto de vista deveria ser "conheceram".2) Ele lecionava, atendia com solicitude aos que lhe "fazíamos" consultas sobre vários assuntos...»O mesmo caso. Para mim, "fazíamos" está empregado errado; deveria ser "faziam". Estarei certa ou se trata de concordância ideológica, o que não aceito sem ter uma boa explicação que me convença.Desde já, fico-lhe muito grata.

Resposta

O contexto em apreço inclui o pronome relativo que e um antecedente, que na primeira frase é «aqueles», e na segunda é «os». Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo 1984, págs. 497/498) descrevem sobretudo casos deste tipo de construção em que o antecedente demonstrativo é predicativo ou aposto de um pronome pessoal sujeito, como nos exemplos (idem, ibidem):(1) «Não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo.» Aqui os referidos gramáticos afirmam que esta concordância pode ser feita, não a encarando, assim, como obrigatória. Além disso, Cunha e Cintra mostram que a concordância pode (mais uma vez, não é obrigatório) ser feita com o demonstrativo, «[…] se não há interesse em acentuar a íntima relação entre o predicativo e o sujeito»; p. ex. (idem, ibidem):(2) «Eu sou aquele que veio do imenso rio.»Repare-se que, embora haja duas opções, o demonstrativo está sempre ligado a um pronome sujeito, nós em (1), e eu em (2).Nas frases apresentadas na pergunta, os demonstrativos aqueles e os não são predicativos de nenhum sujeito na 1.ª pessoa do plural, nós; deste modo, não há razão para usar a forma verbal correspondente… Ou há? É que o contexto discursivo ou situacional em que as frases ocorrem poderia permitir as formas de 1.ª. Por outro lado, os demonstrativos parecem constituir uma classe a que é inerente a noção de 3.ª pessoa; pelo menos, é o que se depreende da descrição de Cunha e Cintra (ibidem), para quem a opção pela 3.ª pessoa em (2) se justifica por estar «em concordância com o demonstrativo».Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2002), confirma a análise de Cunha e Cintra (1984), mas também a completa por ser mais explícito (pág. 561): se que tem por antecedente um demonstrativo (aquele e o), o verbo assume a forma de 3.ª pessoa. Porém, o gramático assinala que (idem, ibidem):«Quando, por silepse, se quer incluir a pessoa que fala ou a que se dirige, pode-se pôr o verbo da oração adjectiva na 1.ª ou 2.ª pessoa do plural:Por que a verdade é que somos nós os que fabricamos os próprios aspectos da natureza (…)[…]Porque voltastes sem vo-lo eu ordenar, vós os que tínheis jurado obedecer-me em tudo? […]»Considero, pois, que nas frases da consulente é preferível a 3.ª pessoa do plural à 1.ª do plural. A concordância poderia ser ideológica («naqueles que, entre/dentre nós,...»), mas o pronome nós não está explícito nessas frases e, portanto, não afecta, pelo menos sintacticamente, aqueles e os, antecedentes de que. Logo, estes demonstrativos dão lugar ao uso da 3.ª pessoa, já que não ocorrem como predicativos dos pronomes sujeito de pessoas gramaticais diferentes.

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