Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Trabalho numa casa comercial. No período natalício afixei o seguinte aviso à vista dos clientes:  

«À semelhança de anos anteriores, vamos prolongar o horário de funcionamento nos domingos anterior e posterior ao Natal até às 20 horas.»

Vários clientes comentaram que havia alguns erros linguísticos.

Como não quero ter razão só porque insisto ou falo mais alto, gostava que me dissessem se está devidamente bem escrito, ou não, o dito aviso.

Obrigado.

Resposta:

O aviso afixado – «À semelhança de anos anteriores, vamos prolongar o horário de funcionamento nos domingos anterior e posterior ao Natal até às 20 horas» – não apresenta erros. O que se pretende dizer com o mesmo é que o horário de funcionamento do estabelecimento se prolongará em dois domingos distintos: o domingo anterior e o domingo posterior ao Natal.

No entanto, o que talvez causa estranheza a quem lê o aviso é a pluralização de domingo, enquanto os adjetivos anteriorposterior se mantêm no singular. Neste caso temos um substantivo no plural («dois domingos») que é modificado pelos dois adjetivos apresentados: um deles modifica o primeiro domingo, e o outro, o segundo, e, por isso mesmo, apresentam-se no singular. Veja-se outro exemplo distinto: «eu gosto das blusas verde e amarela.» Neste caso falamos de duas blusas, sendo que uma delas será verde e outra, amarela. 

Existe, ainda assim, forma de combater esta estranheza, que passa pela restruturação da frase: «À semelhança de anos anteriores, vamos prolongar o horário de funcionamento no domingo anterior e no domingo posterior ao Natal até às 20 horas». Aqui o substantivo domingo passa para o plural e repete-se duas vezes. 

Pergunta:

Admitindo o princípio da pressuposição inerente ao enunciado que se segue, pergunto-vos se podemos aceitá-lo:

«O André ficou a dever-lhe uma.»

É claro que o enunciado («dever-lhe uma») remete para «ajuda». No entanto, estou em dúvida quanto à sua aceitação/admissibilidade.

Agradecia o vosso esclarecimento.

Resposta:

É plausível que a expressão «ficar a dever uma», interpretável como «ficar em dívida com alguém», tenha chegado ao português pela via do inglês «to owe someone one», que tem exatamente o mesmo significado.

Observe-se que o verbo dever é um verbo transitivo, ou seja, pede sempre complemento. No caso de «dever uma», «uma», que subentende «uma ajuda» ou «uma coisa como retribuição de favor ou auxílio», é o complemento direto. Trata-se, portanto, de uma construção em que se omitem palavras, ou seja, faz-se a omissão (elipse) de «ajuda» ou «coisa».

Note-se que apesar de a expressão em apreço ter começado a conhecer alguma difusão, a verdade é que num registo culto não se aceita, confinando-se o seu uso somente ao registo informal. Acrescente-se, aliás, que o dicionário inglês-português da Infopédia, no artigo relativo ao verbo to owe («dever»), apresenta como equivalente do inglês idiomático «I owe you one» a frase «fico-te a dever um favor», e não a tradução literal «fico-te a dever uma», donde se infere que esta última formulação é decalcada do inglês e não se recomenda em português.

Pergunta:

Gostava de saber se é possível dizer «muito fundamental.»

Ex.: «Prestem atenção pois o tema de hoje é muito fundamental.»

Resposta:

Apesar de fundamental ser um adjetivo, que faria o seu grau superlativo absoluto analítico como «muito fundamental», não se recomenda este uso.

A palavra fundamental marca a ideia de que algo é absolutamente necessário ou indispensável (parafraseável como «muito importante») e, nesta significação, verificamos que lhe está inerente um elevado grau da propriedade denotada (absolutamente necessário). Sendo assim, o significado deste adjetivo leva a considerá-lo equivalente a um superlativo, razão por que dizer «muito fundamental» se torna redundante.

No entanto, tendo em conta que fundamental é um adjetivo, não seria impossível associar-lhe o advérbio muito e achar que, sintaticamente, se trata de uma construção correta. Mesmo assim, é de evitar; e, se tiver  de ocorrer por uma questão de ênfase, melhor será confiná-la a contextos informais.

Pergunta:

Funcionar aceita a preposição em ou a?

«Funciona nos sábados.»

«Funciona aos sábados.»

Grato!

Resposta:

A questão colocada não se prende com o verbo funcionar, mas sim com a preposição que antecede os dias da semana, no caso, sábado.

Quando nos referimos a uma ação habitual, que ocorre com frequência, devemos optar pela preposição a, seguido do plural do nome do dia da semana:

(1) «Funciona/abre/fecha aos sábados» [i.e., todos os sábados]

A  construção em (1) também permite o emprego de «ao sábado», com o nome no singular.

Por outro lado, quando a ação ocorre uma vez ou esporadicamente, sem regularidade, a preposição que devemos usar é em e, por se tratar de uma ação singular, o dia que se segue à preposição deve também estar no singular: 

(2) «Funciona/abre/fecha no sábado.» [i.e., no próximo sábado]

Assim sendo, não está correto dizer «funciona nos sábados». 

Pergunta:

Poder-se-á afirmar que e frase  «O Rui está a jogar mais ele» está errada?

Resposta:

A frase não está errada.

É comum ouvir-se «estou a jogar mais ele» com o significado de «estou a jogar com ele», construção em que ao verbo se associa o advérbio mais, o qual assume um valor equivalente ao da preposição com. No entanto, esta construção, que está correta, denota um estilo mais popular e cinge-se geralmente ao discurso em contextos informais,como confirma o registo do seu uso preposicional no Dicionário Houaiss: «preposição Uso: informal. [...] junto a; com. Ex.: a noiva compareceu ao enterro mais a família».

A construção mais convencional (e menos expressiva) em português-padrão é, sim, «estou a jogar com ele», com o verbo estar e a preposição com. Num registo formal, mais contido, muitos falantes preferirão, portanto, «o Rui está a jogar com ele».