Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em termos coloquiais, quando nos referimos a alguém presunçoso, ouvi algumas vezes as espressões «galo encrespado» e «galo encristado».

Qual delas é a correta?

Obrigada!

Resposta:

As duas expressões – «galo encrespado» e «galo encristado» – estão corretas e são sinónimas. E por elas entende-se: «estar-se cheio de soberba, de presunção, de vaidade».

Entenda-se que os verbos encresparencristar estão associados à ideia de «tornar-se cheio de soberba; enfatuar-se, enfunar-se» (Dicionário Houaiss), o segundo  encristar  em sentido figurado. 

Também a literatura atesta as duas expressões:

(1) «No pátio, o galo, todo encrespado, bailava passinhos curtos ao redor das galinhas e logo se desaforava num canto persuasivo» (Joyce, PatríciaA Maior Distância. In Corpus do Português)

(2) «O Administrador, que advogara em Mértola, protestou, encristado.» (Queirós, Eça deA Ilustre Casa de RamiresIn Corpus do Português)

Pergunta:

Na frase «Pensemos, por exemplo, nas confusões decorrentes de algumas trocas de mensagens», a expressão «de algumas trocas de mensagens» desempenha a função de complemento do adjetivo?

Resposta:

Em «Pensemos, por exemplo, nas confusões decorrentes de algumas trocas de mensagens» o constituinte «de algumas trocas de mensagens» incide no adjetivo decorrente desempenhando, assim, a função de complemento do adjetivo, i.e., é uma expressão argumental que completa o sentido do adjetivo, neste caso, especifica a origem ou causa das confusões.

Note-se que neste caso o adjetivo – decorrente – é formado a partir do verbo decorrer e, por isso, o seu complemento corresponde ao do verbo:

(1) «decorrentes de algumas trocas de mensagens» – cf. «decorrer de algumas trocas de mensagens».

Como na generalidade dos adjetivos, o complemento pode ser omitido e, ao fazê-lo, o «complemento pode ser recuperado contextualmente, quer por um antecedente linguístico, quer a partir da própria situação de enunciação» (Fundação Calouste Gulbenkian, Gramática do Português, pág. 1366)

(2) «Pensemos, por exemplo, nas confusões decorrentes».

Pergunta:

Escrevi a frase:

«Não se esqueçam de guardar a fatura.»

Neste texto, supomos que todos têm apenas uma fatura.

O português não é minha língua materna e agora apareceram dúvidas.

Uns disseram que está errado e que faturas deve estar sempre no plural neste contexto. Outros disseram que fatura no singular está correto.

Se faz favor, qual é a vossa opinião?.

Resposta:

Não é fácil afirmar-se qual das formas é a correta, porque está dependente da interpretação que lhe é dada. Ainda assim, no contexto que nos é dado, talvez fosse mais correto o exemplo (i):

(i) «Não se esqueçam de guardar a fatura.» = «não se esqueçam de guardar qualquer fatura que peçam/recebam/não se esqueçam de guardar cada fatura»

(ii) «Não se esqueçam de guardar as faturas.» = «não se esqueçam de guardar todas as faturas».

Há, ainda, forma de tornar mais explicita a nossa intenção, se afirmarmos «Não se esqueçam de guardar a vossa fatura». 

O exemplo (ii), em que temos faturas, no plural, pode levar a três leituras:

(1) dirigimo-nos a um grupo alertando para que não se esqueça de guardar as faturas, todas juntas, numa gaveta, por exemplo.

(2) dirigimo-nos a um grupo alertando para que cada elemento não se esqueça de guardar as faturas, assumindo que cada um tem mais que uma fatura.

(3) dirigimo-nos a um grupo alertando para que cada elemento não se esqueça de guardar a única fatura que tem, sabendo, no entanto, que há uma pluralidade de faturas na sala e, por isso, referimo-nos a elas no plural.

É por esta razão que se sugere que não se opte por «Não se esqueçam de guardar as faturas», quando se assume que cada pessoa tem uma única fatura para guardar. 

Onde está o meu <i>taparuere</i>?
Um exemplo de derivação imprópria

«[À] semelhança de tantas outras marcas que deram origem ao nome de objetos – são o caso a giletechiclete quispo, nomes de objetos provenientes das marcas registadas Gillette, Chiclets e Kispo, respetivamente – também se encontra registada a forma taparuere», refere a consulente Sara Mourato numa reflexão acerca do aportuguesamento de taparuere.

Pergunta:

Como posso distinguir «apesar de», locução conjuncional, de «apesar de», locução prepositiva?

Muito obrigada.

Resposta:

Perceba-se, antes de mais, o que se entende por locução conjuncionais adverbiais e por locução prepositiva:

(1) a locução conjuncional adverbial (e as conjunções conjuncionais) «são formas que têm como função estabelecer a conexão entre a oração subordinante e a oração subordinada no domínio da subordinação adverbial» (Gramática do Português (GT), Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 1678). 

(2) locuções prepositivas (ou locução preposicional) «funcionam como verdadeiras preposições» e «incluem obrigatoriamente, na sua parte final, uma preposição simples, tipicamente de ou a (mais raramente em ou com), a qual não introduz qualquer significado, é exclusivamente de ligação gramatical entre a parte inicial da locução e o seu complemento» (ibidem, pág. 1503). 

No caso da locução «apesar de», a distinção entre ser locução conjuncional adverbial e locução prepositiva é muito estreita. Para se entender, vejam-se dois exemplos:

(3) «Apesar de falares português, não percebeste o meu amigo»

(4) «Saímos de casa, apesar da chuva»

No caso de (3), estamos perante uma locução conjuncional, i.e., a locução estabelece a conexão entre as duas orações, a subordinada – «apesar de falares português» – e a subordinante – «não percebeste o meu amigo». Note-se que nesta locução, além de os dois elementos serem preposições, introduzem sempre orações infinitivas (orações cujo verbo tem de se encontrar no infinitivo).  

Já no caso de (4), estamos perante uma locução prepositiva. O complemento da locução é um sintagma nominal e não uma oração infinitiva. Contudo, a verdade é que introduz também uma oração adverbial.

Assim, à luz da interpretação feita acima, dir-se-ia que «apesar de» introduz sempre orações adve...