Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Será que é certo o uso da construção «roubaram-me meus sapatos».

Resposta:

A construção «roubaram-me meus sapatos»1 é redundante, no entanto não deixa de ser aceite, pelo menos na oralidade. Na escrita, evita-se esta construção porque estamos a referir por duas vezes a pertença dos sapatos. Em lugar disso, podemos optar pelas construções «roubaram-me os sapatos», onde o objeto pronominal me indica posse, assumindo-se assim como um dativo de posse; ou ainda a construção «roubaram meus sapatos»1, onde temos presente a pronome possessivo meus. 

1 Em português europeu o pronome possessivo vem sempre acompanhado de artigo, o mesmo podendo não acontecer nas restantes variedades, onde é comum a omissão deste. Em português do Brasil, por exemplo, ocorre com frequência o pronome possessivo sem artigo. 

Pergunta:

Gostaria de conhecer o significado da expressão «sem ais nem uis» e de saber se é de uso corrente ou não. Aproveito para perguntar se a expressão se deve colocar sempre entre aspas, independentemente do contexto em que surge.

Obrigado.

Resposta:

 As interjeições ai ui, entre outras aceções, podem usar-se quando exclamamos de dor, sofrimento ou em protesto. Assim, a expressão, de uso corrente e aceitável, «sem ai nem ui» – ou, no plural, «sem ais nem uis» – tem o significado de «sem expressar sofrimento ou sem protestar». São exemplos (Corpus do Português, de Mark Davies):

(1) «Em todas as crianças, os dentes põem abalo a romper, como o senhor sabe. Pois neste vieram, sem ai nem ui! » (Júlio Dantas, Os Galos de Apolo, 1927)

(2) «Ainda lhe deitei o cajado, mas ora, o pego enguliu-o sem dizer ai nem ui, como aqui o meu Farropo engole os tassalhos de pão que lhe eu jogo.» (Aquilino Ribeiro, Terras do Demo, 1919)

Esta expressão, à semelhança de outras expressões idiomáticas, não tem de ocorrer entre aspas, uma vez que o seu significado está atestado e é, em principio, reconhecida pela maioria dos falantes. 

Pergunta:

Qual a regência do verbo transferir quando ele é transitivo indireto? Eu posso usar as preposições a e para?

Resposta:

O verbo transferir, enquanto verbo transitivo indireto, faz-se acompanhar das preposições e para. Veja-se:

1. «Transferir o trabalho para o João» 

2. «Transferir direitos a alguém».

Em 1 percebemos que transferir é utilizado no sentido de «passar, incumbir», enquanto em 2 o verbo significa «ceder, transmitir». 

Refira-se que este verbo não é um verbo somente transitivo indireto, mas sim transitivo direto e indireto porque seleciona sempre complemento direto e complemento indireto ou oblíquo. Nos exemplos apresentados temos os seguintes complementos diretos: «o trabalho», em 1, e «direitos», em 2. 

Pergunta:

«Os mais recentes ataques miraram o Censo Nacional.»

O verbo mirar é transitivo direto ou indireto?

Grato.

Resposta:

O verbo mirar é classificado como sendo:

1. transitivo direto quando significa: «fixar os olhos em; fitar, olhar» (ex.: mirou as estrelas), «dirigir os olhos para alguém/algo; olhar» (ex.: mirou de relance a porta), «olhar longamente à distancia; observar, espreitar» (ex.: o homem mirava as pessoas da rua), «fazer pontaria a um alvo» (ex.: mirou a presa) e  (ex.: mirou (a) uma gratificação);

2. transitivo indireto quando significa: «fazer pontaria a um alvo» (ex.: mirou no alvo), «ter em vista, aspirar a; visar, pretender, desejar» (ex.: mirar ao desenvolvimento do país) e, num sentido figurado, «estar voltado para, dar, olhar» (ex.: a janela mira para o jardim);

3. intransitivo: «fazer pontaria a um alvo» (ex.: ele estar a aprender a mirar);

4. pronominal quando significa: «fixar os olhos em; fitar, olhar» (ex.: as pessoas miravam-se atentamente), «olhar ou contemplar a sua própria imagem refletida» (ex.: ele mira-se no espelho a toda a hora), «refletir-se, espelhar-se, reproduzir-se», em sentido figurado (ex.: as árvores miram-se no lago).

No exemplo apresentado pelo consulente, o verbo mirar é transitivo direto, como se conforma pelas abonações em 1. Contudo, quando significa «ter em vista, aspirar a; visar, pretender, desejar», pode ocorrer também como transitivo indireto, construindo regên...

Pergunta:

Sei que as formas ei-lo e suas variantes de género e número são válidas. Mas sempre tive dúvida se existe a forma "ei-no-lo", "ei-vo-lo" e suas variações.

Obrigado!

Resposta:

O advérbio eis é usado com significado semelhante a «aqui está», em referência a algo ou alguém que se encontra ou se quer apresentar no momento da enunciação. Pode, à semelhança dos verbos, ser seguido pelos pronomes pessoais átonos correspondentes ao complemento direto, isto é, me, te, o, a, nos, vos. É, portanto, correto e comum encontrarmos formas como ei-lo, eis-nos, etc.

No entanto, sequências como «ei-no-lo» ou mesmo «ei-vo-lo» são construções agramaticais, porque eis não é compatível com as forma pronominais átonas de complemento indireto (me, te, lhe, nos, vos, lhes): uma sequência como «eis-lhe o livro que procurava» não é, portanto, aceitável. Por este motivo, tal como se rejeita «eis-nos o livro» e «eis-vos o livro», também não se aceita as sequências totalmente pronominalizadas «eis-no-lo» e «eis-vo-lo». Talvez a pergunta do consulente advenha da posição dos pronomes no fenómeno de mesóclise, ou seja, o caso em que os pronomes surgem no meio do verbo, quando este se encontra no futuro do indicativo ou no condicional – apresentar-no-lo-á ou apresentar-vo-lo-ia –, construção que aqui não se aplica. 

Importa referir que, à semelhança dos verbos, antes dos pronomes pessoais a, cai o s ao advérbio e acrescenta-se um l ao pronome: «ei-la», em vez de *«eis-la» (o * indica agramaticalidade).