Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber por que a palavra cusca passou a significar «pessoa bisbilhoteira».

Qual é a etimologia da palavra?

E sabe-se de alguma relação entre seu significado original e a forma como passou a ser usada informalmente?

Obrigada.

Resposta:

A palavra cusca/cusco pode significar, coloquialmente, «pessoa bisbilhoteira» e está relacionada ao verbo cuscar, que significa «bisbilhotar; fofocar». Com este significado, não é possível precisar a etimologia desta expressão.

Ainda assim, assinale-se o registo de cusco como substantivo masculino com o significado de «cão sem raça e pequeno», na região de Rio Grande do Sul, Brasil, ou, por extensão metafórica, «indivíduo de baixa estatura e sem importância» (Dicionário Houaiss). Cusco terá origem no espanhol platino e é forma intensificada ou redobrada da interjeição cuz!, usada para chamar cães (ibidem).

Note-se que, também em espanhol, se disponibiliza a palavra cusca com o uso idiomático em «hacer la cusca»), variante de «hacer la cusqui», que significa «incomodar, maçar, prejudicar» (Diccionario de la Lengua Española). Como a noção de «maçar» pode associar-se à de «bisbilhotar», a forma espanhola cusca pode ser relaciona semanticamente com a sua homónima em português, mas não há comentários nas obras consultadas quanto à sua relação etimológica.  

Atendendo a que cusco e coscuvilheiro partilham o mesmo significado, uma outra hipótese poderá ser a de cusco constituir um derivado não afixal de coscuvilhar ou uma redução (truncação) de coscuvilheiro, vocábulo atestado desde 1881, de acordo com o Dicionário Houaiss. Nesta fonte, também se consigna a variante cosculheiro, docum...

Pergunta:

Na frase seguinte o que significa a combinação «tenho a»: «Tenho a dizer-vos que a origem do termo azulejo é árabe.»

É o mesmo que «tenho de» ou «tenho que» com sentido de dever? É normal utilizar infinitivo ter com a proposição a?

Muito obrigado

Resposta:

A construção «ter a» + infinitivo tem uso mas a sua legitimidade parece não ser consensual.

É uso equivalente a «ter que», i. e., veicula a ideia de dar uma informação sobre o que o emissor possui ou tem em mão, como defende Francisco Fernandes, no Dicionário de Verbos e Regimes.

Quanto ao facto de ser um ponto de controvérsia, a consultora Edite Prada apresentou em 2003 mais duas referências que discutem esta construção:

1. A primeira referência aparece na 3.ª edição do Prontuário Ortográfico da Língua Portuguesa de Xavier Roberto e Luís de Sousa, onde os autores consideram o uso de «ter a» inaceitável, classificando-o como um galicismo, e recomendam a substituição por «ter que».

2. No Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem de Rodrigo de Sá Nogueira afirma-se sobre «ter a»: «… temos diante de nós um galicismo tão enraizado que não creio ser possível bani-lo da língua.»

A mesma consultora concluia que  a expressão «ter a» + infinitivo, apesar de seu uso contínuo (há muitas ocorrências no Corpus do Português de Mark Davies), não tem sido amplamente aceite. Enq...

Pergunta:

Quais são as diferenças de significado entre os termos catástrofe e cataclismo?

Agradeço, de antemão, o auxílio.

Resposta:

Catástrofe e cataclismo são termos que divergem quando catástrofe (do latim catastrŏpha pelo grego καταστροϕή) significa: 

(1) fim deplorável e lastimoso;

(2) na literatura: último e fundamental momento de um poema dramático;

(3) na literatura e no teatro: conjunto dos últimos e funestos acontecimentos que constituem o desenlace da tragédia;

E quando cataclismo (do latim cataclysmos pelo grego κατακλυσµóς) significa:

(1) inundação ou dilúvio de grandes proporções;

(2) convulsão social; série de transformações sociais bruscas e de grande amplitude;

Por seu lado, são termos sinónimos quando se fala em «desastre de grandes proporções e consequências» ou, na área da geologia, «transformação brusca e violenta da crosta terrestre; convulsão geológica»1.

 

1 Fontes consultadas: Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Cências de Lisboa e Dicionário Houaiss

<i>Escoteiros</i> e <i>escuteiros</i>
História e variação ortográfica

As diferenças ortográficas entre as palavras escoteiroescuteiro e as suas origens etimológicas e as diferentes interpretações culturais que lhe estão associadas são exploradas neste texto da consultora Sara Mourato.

Pergunta:

«É de salientar que o grafíti necessita de...» = é importante destacar, salientar que...

Como classificar a estrutura ser de + infinitivo? Qual é o valor da preposição de?

Muito obrigada!

Resposta:

A locução «ser de»1 antes de um verbo no infinitivo, como o exemplo aqui apresentado – «é de salientar» – ajuda num texto a enfatizar a importância, relevância ou natureza de uma determinada ação ou qualidade em relação ao tema em discussão. 

Esta ênfase na importância ou relevância da ação é reforçada pelo valor modal deôntico associado à expressão «ser de», que, no caso, veicula uma modalidade deôntica com valor de obrigação. Isto significa que ao dizer «é de salientar», se transmite a ideia de que é necessário, esperado ou até mesmo obrigatório salientar algo em particular, como se pode ver nas seguintes paráfrases:

(1) «Devemos salientar que o grafíti necessita de...»

(2) «Temos de salientar que o grafíti necessita de...».

 Relativamente ao uso da preposição de, deve-se ao facto de esta ser «usada em perífrases verbais com valor modal» (Fundação Calouste Gulbenkian, Gramática do Português, pág. 1550).

 

1 «O verbo ser não é utilizado como verbo pleno, mas faz parte de uma construção gramaticalizada que é usada para exprimir o valor modal deôntico e em que o acontecimento linguístico construído na enunciação se localiza, relativamente à relação predicativa, num tempo posterior ao tempo da enunciação.» (Mafalda Frade. Sobre a construção ser + de + infinitivo no livro dos oficios do infante D. Pedro).