Sara Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Leite
Sara Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na linha dois do primeiro parágrafo do romance A Viagem do Elefante, de José Saramago, encontramos a expressão «... a quem não ande ao tento da importância das alcovas...». Qual o significado desta expressão?

Resposta:

O nome tento tem, entre outros significados, os de «cuidado, atenção; tino, juízo», sendo fácil intuir a sua relação etimológica com o adjetivo atento.

A expressão «andar ao tento de» significa o mesmo que «andar atento a», ou «dar atenção a».

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem/explicação da expressão: «É o fim do mundo em cuecas».

Resposta:

Penso que só por sorte se pode chegar a esse conhecimento. Expressões como «é o fim do mundo em cuecas» são, provavelmente, inventadas por alguém espirituoso e depois acabam por vingar, sem se saber como, porque as pessoas lhes acham graça. São como as anedotas: por mais geniais que sejam, nunca saberemos quem foi que teve a ideia pela primeira vez.

«Em cuecas» parece servir para intensificar o grau da expressão «fim do mundo», que pode ter o sentido de «grande confusão ou barulho», como nesta reportagem da revista Visão, ou o significado de «a consumação dos séculos», referida no mundo cristão como apocalipse, sentido presente, por sua vez, nesta outra reportagem da Visão (ver Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões).

Pergunta:

«Luís venceu, Joaquim perdeu, e Cláudio empatou.»

Quanto à frase acima, enviada por David Bento, cuja consulta foi respondida, em 3/11/2011, por Sara Leite, gostaria de saber: o uso da vírgula antes do e é correto numa estrutura de três ou mais orações coordenadas?

Resposta:

Parece-me perfeitamente aceitável considerar, como faz o consulente David Bento na sua pergunta, que «em orações coordenadas com diferentes sujeitos e ligadas pela conjunção e, é recomendável o uso da vírgula antes da mencionada conjunção». Trata-se, a meu ver, de situações em que a vírgula exerce a função de desambiguação (precisamente por o sujeito da oração que se segue ao e não ser o mesmo da anterior).

Contudo, admito que essa vírgula seja considerada supérflua (por ter a mesma função da conjunção e) e não consideraria a sua omissão como um erro, no caso de alguém optar por escrever «Luís venceu, Joaquim perdeu e Cláudio empatou».

Porém, se o sujeito das três ou mais orações coordenadas for o mesmo, a vírgula já será totalmente desnecessária antes do e. Por exemplo em: «Luís venceu, depois caiu e finalmente chorou.»

Pergunta:

Numa notícia do jornal Público, surge a seguinte frase: «[...] um fenómeno que deve a sua existência (e consistência) a um acidente geográfico único na Europa: o canhão da Nazaré, um desfiladeiro profundo com 170 quilómetros [...].»

Ora, a minha dúvida surge relativamente ao termo canhão. Em nenhum dicionário que consultei, a palavra canhão era sinónimo de desfiladeiro. Da mesma forma, consultei dicionários de inglês-português, e canyon era sempre traduzido como desfiladeiro ou ravina. No entanto, em Portugal, no calão geológico, a palavra canhão é usada com este sentido.

A minha pergunta: é correto usar a palavra canhão como sinónimo de desfiladeiro, mesmo que o significado não esteja reconhecido em nenhum dicionário? Quando é que começou a ser usada com esse significado no âmbito da geologia ou da oceanografia?

Resposta:

O significado da palavra canhão, no âmbito da geologia, encontra-se atestado em várias bases de dados lexicais, como o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (aceção 10, na versão de 2007, do Círculo de Leitores). Neste dicionário observa-se que existe igualmente a forma não preferível cânion.

No dicionário em linha da Porto Editora (Infopédia), canhão (2) tem também o sentido de «vale profundo de vertentes abruptas, talhado por um curso de água, geralmente em terreno calcário». Segundo a informação etimológica fornecida no mesmo dicionário, a palavra vem «(do italiano cannone, aumentativo de canna, «cana», pelo castelhano cañón, «canhão»)».

Pergunta:

A expressão «espectacularmente bem» está correcta? 

A frase «aquele acidente foi espectacular» está correcta?

Espectacular não é utilizado só no sentido positivo?

Resposta:

«Espetacularmente bem» é uma construção legítima, embora esteja descontextualizada na pergunta. Poderia surgir, por exemplo, na frase «Ele monta a cavalo espetacularmente bem».

O significado do adjetivo espetacular é «que surte grande efeito; que prende a atenção por constituir um verdadeiro espetáculo» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e o mais frequente talvez seja, de facto, utilizá-lo nas situações em que o "espetáculo" é agradável, até porque outra das aceções do adjetivo é «Que é muito bom».

No entanto, existe um terceiro significado, ainda de acordo com a mesma fonte, possivelmente registado em função do uso mais recente: «Que causa grande aparato, sensação ou impressão» – e este é o que justifica utilizá-lo na frase «aquele acidente foi espetacular».

É de referir que, segundo o mesmo dicionário, espetacular pode ainda ser usado em registo popular com o seguinte significado, nada positivo: «Que choca suscetibilidade, provoca escândalo.»