Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Luís venceu, Joaquim perdeu, e Cláudio empatou.»

Quanto à frase acima, enviada por David Bento, cuja consulta foi respondida, em 3/11/2011, por Sara Leite, gostaria de saber: o uso da vírgula antes do e é correto numa estrutura de três ou mais orações coordenadas?

Resposta:

Parece-me perfeitamente aceitável considerar, como faz o consulente David Bento na sua pergunta, que «em orações coordenadas com diferentes sujeitos e ligadas pela conjunção e, é recomendável o uso da vírgula antes da mencionada conjunção». Trata-se, a meu ver, de situações em que a vírgula exerce a função de desambiguação (precisamente por o sujeito da oração que se segue ao e não ser o mesmo da anterior).

Contudo, admito que essa vírgula seja considerada supérflua (por ter a mesma função da conjunção e) e não consideraria a sua omissão como um erro, no caso de alguém optar por escrever «Luís venceu, Joaquim perdeu e Cláudio empatou».

Porém, se o sujeito das três ou mais orações coordenadas for o mesmo, a vírgula já será totalmente desnecessária antes do e. Por exemplo em: «Luís venceu, depois caiu e finalmente chorou.»

Pergunta:

Numa notícia do jornal Público, surge a seguinte frase: «[...] um fenómeno que deve a sua existência (e consistência) a um acidente geográfico único na Europa: o canhão da Nazaré, um desfiladeiro profundo com 170 quilómetros [...].»

Ora, a minha dúvida surge relativamente ao termo canhão. Em nenhum dicionário que consultei, a palavra canhão era sinónimo de desfiladeiro. Da mesma forma, consultei dicionários de inglês-português, e canyon era sempre traduzido como desfiladeiro ou ravina. No entanto, em Portugal, no calão geológico, a palavra canhão é usada com este sentido.

A minha pergunta: é correto usar a palavra canhão como sinónimo de desfiladeiro, mesmo que o significado não esteja reconhecido em nenhum dicionário? Quando é que começou a ser usada com esse significado no âmbito da geologia ou da oceanografia?

Resposta:

O significado da palavra canhão, no âmbito da geologia, encontra-se atestado em várias bases de dados lexicais, como o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (aceção 10, na versão de 2007, do Círculo de Leitores). Neste dicionário observa-se que existe igualmente a forma não preferível cânion.

No dicionário em linha da Porto Editora (Infopédia), canhão (2) tem também o sentido de «vale profundo de vertentes abruptas, talhado por um curso de água, geralmente em terreno calcário». Segundo a informação etimológica fornecida no mesmo dicionário, a palavra vem «(do italiano cannone, aumentativo de canna, «cana», pelo castelhano cañón, «canhão»)».

Pergunta:

A expressão «espectacularmente bem» está correcta? 

A frase «aquele acidente foi espectacular» está correcta?

Espectacular não é utilizado só no sentido positivo?

Resposta:

«Espetacularmente bem» é uma construção legítima, embora esteja descontextualizada na pergunta. Poderia surgir, por exemplo, na frase «Ele monta a cavalo espetacularmente bem».

O significado do adjetivo espetacular é «que surte grande efeito; que prende a atenção por constituir um verdadeiro espetáculo» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e o mais frequente talvez seja, de facto, utilizá-lo nas situações em que o "espetáculo" é agradável, até porque outra das aceções do adjetivo é «Que é muito bom».

No entanto, existe um terceiro significado, ainda de acordo com a mesma fonte, possivelmente registado em função do uso mais recente: «Que causa grande aparato, sensação ou impressão» – e este é o que justifica utilizá-lo na frase «aquele acidente foi espetacular».

É de referir que, segundo o mesmo dicionário, espetacular pode ainda ser usado em registo popular com o seguinte significado, nada positivo: «Que choca suscetibilidade, provoca escândalo.»

Pergunta:

Quanto aos textos técnicos em português europeu, quando os queremos utilizar no Brasil, temos de fazer uma adaptação, pois há termos que são distintos, como, por exemplo, betão, que é designado no Brasil por concreto.

Normalmente ouço as pessoas dizerem que há que «traduzir» um texto ou um desenho para o português do Brasil.

A minha pergunta é: será correto utilizar o termo traduzir nesta situação?

E, se não, qual o termo correcto para referir esta adaptação a outra variedade da mesma língua?

Continuação do vosso excelente trabalho!

Resposta:

É uma boa pergunta, pois é frequente sentirmos a necessidade de empregar, à falta de outro melhor, o verbo traduzir quando não se trata necessariamente de passar um enunciado ou texto de uma língua para outra, mas antes de uma variedade linguística para outra, ou mesmo de um registo para outro.

Com efeito, o significado primeiro de traduzir é «dizer ou escrever numa língua o que foi dito ou escrito noutra» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa). Porém, existem outros, que foram surgindo por extensão semântica e que hoje são perfeitamente legítimos, nomeadamente «dizer de modo diferente; expressar por outras palavras».

Assim, não será incorreto, considerando que há tantas diferenças a nível lexical, sintático e ortográfico entre o português europeu e o português do Brasil, dizer que por vezes é necessário traduzir os textos de uma variedade para a outra.

Cf. «Português de Portugal» é uma redundância?

Pergunta:

Estou com uma dúvida quanto ao uso da vírgula em casos nos quais vejo orações coordenadas e subordinadas se associando.

Aprendi que, em orações coordenadas com diferentes sujeitos e ligadas pela conjunção e, é recomendável o uso da vírgula antes da mencionada conjunção.

Exemplos:

«O plano fracassou, e a polícia prendeu os criminosos.»

«Luís venceu, Joaquim perdeu, e Cláudio empatou.»

Fico na dúvida se a vírgula que antecede a conjunção e ainda seria indicada (ou se seria optativa ou mesmo proibida) se as orações fossem coordenadas entre si, mas também assumissem função de orações subordinadas. Tento formular a seguir um exemplo baseado na segunda construção acima. Nele, as três orações coordenadas também passam a ser orações subordinadas substantivas objetivas diretas:

«Soube que Luís venceu, (que) Joaquim perdeu, e (que) Cláudio empatou.»

Seria mais correto «Soube que Luís venceu, Joaquim perdeu e Cláudio empatou»?

Num caso como o que formulo a seguir, fico com a impressão (como leigo!) de que a vírgula mesmo interrompe a relação de subordinação, ainda que não afete a coordenação:

«Joaquim determinou que Ricardo fosse à repartição, e (que) José ficasse com a sua família.»

Não seria melhor «Joaquim determinou que Ricardo fosse à repartição e (que) José ficasse com a sua família»?

Resposta:

A exposição do consulente é, quanto a mim, muito pertinente e mostra como no consultório do Ciberdúvidas não se aprende apenas com as respostas, mas também com certas perguntas.

Concordo que a relação de subordinação se veja clarificada pela ausência da vírgula antes da conjunção e, pois a vírgula quebra (a meu ver desnecessariamente) essa relação. Assim, também aconselharia as seguintes versões:

«Soube que Luís venceu, Joaquim perdeu e Cláudio empatou.»

«Joaquim determinou que Ricardo fosse à repartição e (que) José ficasse com a sua família.»