Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A seguinte expressão, «Atenção! Não! Sim! Claro!», quantas frases e orações tem?

Resposta:

Segundo Cintra e Cunha (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 119), uma frase «é um enunciado de sentido completo, a unidade mínima de comunicação (...), [podendo] ser constituída (...) de uma só palavra: (...) Fogo! Atenção! Silêncio!».

No Dicionário Terminológico (DT), tece-se ainda a seguinte consideração: «Há frases que aparentam não ter verbo principal, como a resposta no exemplo (i):

(i) A: Vais ver esse filme?

    B: Vou.

Na verdade, em contextos deste tipo, considera-se que o verbo principal foi apagado ou pode ser subentendido através de um processo de elipse» (B4. Sintaxe/Frase).  

Deste modo, podemos considerar que, no exemplo proposto pela consulente, existem quatro frases, sendo que cada uma delas poderá depender de contextos diversos, em sintonia com o que é exemplificado em (i). Podemos até eventualmente imaginar uma conversa telefónica durante a qual «Atenção! Não! Sim! Claro!» seja dito por um dos intervenientes na conversa, sendo que o contexto dependerá sempre do que, do outro lado da linha, o outro interveniente disser. Neste sentido, e seguindo o raciocínio do exposto no excerto retirado do DT, os restantes elementos de todas estas frases, incluindo, portanto, os verbos, encontrar-se-iam subentendidos através de um processo de elipse. Se alguém disser, por exemplo, «atenção!», podemos eventualmente subentender «[tome-se] atenção!», ou «[apelo à vossa] atenção!», ou ainda «[toma] atenção [a isto]!».

Pergunta:

Em diversas edições de Dom Casmurro, de Machado de Assis, no capítulo III, "A denúncia", encontro o seguinte trecho: «Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada [...].» Caso o original de Machado de Assis confirme a existência da crase, embora não usual, a mim soa como uma forma de precisar um evento no tempo e, portanto, correcto.

Gostaria que saber da vossa opinião, que, antecipadamente, agradeço.

Resposta:

Parece ter toda a razão o estimado consulente, pois na esmagadora maioria das versões de Dom Casmurro por mim consultadas (inclusivamente na edição digitalizada da Biblioteca Nacional do Brasil), o excerto transcrito surge com a referida crase, exa{#c|}tamente nos moldes aqui apresentados. Apenas na edição de 2000, da Abril/Controljornal, para a «Biblioteca Visão», o excerto do capítulo III transcrito pelo consulente se encontra fixado da seguinte forma: «Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze a semana passada» (p. 8). Presumo, portanto, em sintonia com o consulente, que não se trata de nenhuma gralha.

Por outro lado, é curioso verificar que no Corpus de Extractos de Textos Electrónicos NILC/Folha de São Paulo (CETENFolha), a única ocorrência que surge da contra{#c|}ção da preposição a com o artigo a (à), compatível com o contexto sugerido, é justamente este excerto que nos encontramos a analisar, retirado de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

De fa{#c|}to, no caso em apreço, à surge com o valor de «aquando de», «por ocasião de», «na altura de». Assim, poderíamos eventualmente substituir «Capitu fez quatorze à semana passada» por «Capitu fez quatorze a semana passada», «Capitu fez quatorze na semana passada», «Capitu fez quatorze aquando da semana passada», ou «Capitu fez quatorze por ocasião da semana passada».

Seguindo e...

Pergunta:

Relativamente ao estranho quiasmo de um consulente lisboeta, em 23/11, na consulta Quiasmo e anástrofe, respondida por Pedro Mateus, gostaria de comentar e ao mesmo tempo perguntar sobre a pronúncia da letra grega χ, ali transliterada foneticamente para "qui". Assim já a encontrei em diversos registros, mas acredito que assim se imagina, em português, por não termos em nossa língua o som aspirado do "h" em inglês, do "j" em espanhol ou de outros em outras línguas que não me vêm à memória, neste momento. Pediria um esclarecimento, não sem antes dizer ao consulente lisboeta que existem, aqui no Brasil, uns versinhos sobre o tipo, o ambiente e a condição de quem escreve poesias nesse inusitado local:

«Triste sorte,

triste sina,

ser poeta,

de latrina»

Obrigado, e desculpem o tom jocoso no final; minha consulta, no entanto, é séria.

Resposta:

De facto, qui encontra-se registado na generalidade dos dicionários de língua portuguesa consultados como sendo o «nome da vigésima segunda letra do alfabeto grego (, ), da qual deriva o x (Do gr. khi)» (Diciopédia 2009). Na Infopédia, é ainda apresentada a seguinte transcrição fonética para a referida palavra: ['ki].

No Dicionário Houaiss, é acrescentada, como sinónimo de qui, a palavra chi. Nesta mesma fonte, é também dada a seguinte informação: «em gr. kheî ou khî, transliterada, por seu caráter de gutural surda aspirada, ora como chi ora como khi ou ainda qui, representada em lat. em helenismos com ch».

Valerá igualmente a pena anotar que o Novo Dicionário Aurélio refere que qui «corresponde etimologicamente a um c (como em caráter) ou a um qu (como em quiasmo)».

Relativamente ao castelhano, será interessante atentarmos na entrada proposta pelo Dicionário da Real Academia Espanhola: «ji: (Del gr. χῖ). Vigésima segunda letra del alfabeto griego (Χ, χ), que corresponde a ch del latino, y a ese mismo dígrafo o a c o qu en las lenguas neolatinas; p. ej., caos, Aquiles1.

Finalmente, no que diz respeito ao inglês, a palavra correspondente à portuguesa qui será efectivamente chi, pronunciando-se, de acordo como Oxford English Dictionary[kaɪ]<...

Pergunta:

Peço desculpa pelo exemplo que vou dar (retirado de uma quadra escatológica tradicional que se podia antigamente encontrar rabiscada nas paredes de qualquer quarto de banho de café da cidade do Porto), mas, de momento, não me ocorre nenhum exemplo retirado de escritas literárias mais elevadas. Reza assim a tal quadra:

«A cagar puxei um cigarro,

A cagar o acendi,

A cagar o fumei todo,

A fumar caguei para ti.»

Agora, a minha dúvida: como se chama a figura de estilo presente nos últimos dois versos da quadra, com a inversão dos verbos cagar e fumar: «a cagar fumei», «a fumar caguei»?

Muito obrigado e, mais uma vez, o meu pedido de desculpas pelo exemplo escatológico que dou. Se bem me lembro, este era um recurso estilístico comum no Padre António Vieira, mas não dispunha à mão de nenhuma colectânea das suas obras.

Resposta:

A figura de estilo a que o caro consulente se refere será certamente o quiasmo:

«Gr. Khiasmós, disposto em cruz; o termo deriva da letra grega X (qui). Lat. commutatio, onis, comutação, troca. Espécie de antítese, também conhecido por cruzamento sintático ou contaminação sintática, consiste no cruzamento de grupos sintáticos paralelos, de forma que um vocábulo do primeiro se repete no segundo, em posição inversa (AB X BA):

«"Melhor é merecê-los sem os ter / que possuí-los sem os merecer" (Camões, Lusíadas, c. IX, est. 93); "O dente morde a fruta envenenada / a fruta morde o dente envenenado" (Carlos Drummond de Andrade, Descoberta).»

(Massaud Moisés, Dicionário de Termos Literários, 12.ª edição, São Paulo, Cultrix, 2004, pp. 376/377.)

Porém, reparo que no penúltimo verso transcrito, «A cagar o fumei todo», será ainda detectável um outro recurso estilístico, mais concretamente uma figura de sintaxe chamada anástrofe, que consiste, de forma muito sumária, na «inversão (...) da ordem natural das palavras numa frase, para obter determinado efeito estilístico» (Carlos Ceia, E-Dicionário de Termos Linguísticos). Assim, a ordem mais natural dos termos no referido verso talvez fosse «Fumei-o todo a cagar» e não «A cagar o fumei todo». No entanto, a inversão terá justamente como objectivo a insistência clara no verbo em causa e, consequentemente, na acção a ele associada.

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ler se enquadra no conceito de verbo dicendi, ou declarativo.

Obrigadíssima.

Resposta:

No Dicionário de Linguística, de Jean Dubois et alii (9.ª edição, São Paulo, Cultrix, 2004, p. 166), é proposta a seguinte definição de verbo declarativo: «é o que exprime o enunciado puro e simples de uma asserção, como dizer, contar, declarar, anunciar, afirmar, etc.»

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, na Gramática da Língua Portuguesa, de Mateus et alii (3.ª edição, Lisboa, Caminho, 1992, p. 270), são listados como principais verbos declarativos, para além dos já citados: acrescentar, alegar, assegurar, concluir, concordar, confessar, criticar, decidir, desculpar, insinuar, insistir, jurar, observar, pregar, proclamar, prometer e sugerir.

Ainda a este propósito, Rui Pedro Ribeiro Marques, num artigo intitulado «Sobre a selecção de modo em orações completivas» (Actas do XII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 1997), desenvolve as seguintes reflexões: «[os verbos declarativos] referem um acto assertivo cujo agente é o sujeito da frase matriz, [sendo que] (...) o agente da asserção (proposição tida como verdadeira pelos participantes numa interacção discursiva) compromete-se com a verdade da proposição que assere». Posto isto, Rui Marques acaba ainda por acrescentar os seguintes verbos à já extensa lista de verbos declarativos: achar...