Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Desde já agradeço o empenho brilhante que a equipe do Ciberdúvidas tem ao dispor para o público deste site fantástico. Sempre vossos textos são aclamados com louvor nas discussões que realizamos sobre a língua e suas especificidades em sala de aula.

Bem, estou, desta vez, a fazer um trabalho de pesquisa sobre a história da ortografia na língua portuguesa, mais precisamente sobre o aparecimento do processo de hifenização na ortografia. Qual a origem do uso do hífen na ortografia do português e quais suas principais alterações de uso no decorrer na evolução do português? Onde posso encontrar alguma referência acadêmica sobre o tema?

Gostaria de saber também sobre a utilização dos termos agudo, grave ou esdrúxulo para designar respectivamente, um vocábulo oxítono, paroxítono ou proparoxítono aqui no Brasil. É legítimo esse uso por aqui? Embora já tenha consultado alguns dicionários que confirmam o uso, fiquei receoso.

Agradecido antecipadamente.

Resposta:

Agradeço, em nome da equipa do Ciberdúvidas, as simpáticas palavras que teve a amabilidade de nos endereçar.

Como já aqui foi múltiplas vezes salientado por vários consultores, as regras do uso do hífen nas palavras compostas são das mais complexas na ortografia portuguesa. Aliás, os seus níveis de diversidade e de discrepância são tais, que o Acordo Ortográfico recentemente ratificado prevê a sua suposta simplificação.

A propósito do lançamento do seu mais recente livro, metaforicamente intitulado Peso do Hífen, Onésimo Teotónio Almeida, numa recente entrevista concedida ao Jornal de Letras, Artes e Ideias, faz justamente referência aos imbróglios históricos de que este pequeno traço horizontal tem sido epicentro, chegando mesmo a reconhecer que a opção pelo referido título para o seu livro não tenha talvez sido a mais feliz, sobretudo «depois dos acesos debates sobre o Acordo Ortográfico, referindo-se «obviamente à decantada questão do hífen».    

Dito isto, compreenderá o nosso consulente que não será este o local mais adequado para entrar em considerações de tão exigente profundidade.

Podemos, contudo, dar aqui conta de algumas notas que, penso, serão do maior interesse do consulente, pois vão certamente ao encontro das dúvidas expostas:

1. Q...

Pergunta:

Na frase «Eu comprei um queijo e tu ainda me deste um», o último «um» a que classe gramatical pertence? Ele tem a função de um pronome, mas não o pode ser.

Agradecida.

Resposta:

Na Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus e outros (1989, p. 260), é feita a seguinte observação: «A relação de junção entre frases ou entre constituintes de frase que possuem dois elementos idênticos provoca a elipse do segundo elemento», ex.: «O Miguel tem ido ao cinema, e a Paula também tem ido.» Constatamos, portanto, que o complemento do verbo — «ao cinema» — foi elidido. Poderíamos até ter ido mais longe e suprimido todo o sintagma verbal: «O Miguel tem ido ao cinema, e a Paula também.»

Este tipo de processo é muito comum na língua portuguesa, sendo particularmente utilizado em estruturas coordenadas, como é o caso do exemplo acima citado e da frase sugerida pela consulente. No fundo, a palavra queijo, apesar de não ter uma concretização lexical na segunda oração, acaba por estar presente de forma subentendida: «Eu comprei um queijo, e tu ainda me deste um [queijo].»

Sendo assim, e respondendo directamente à pergunta feita pela consulente, o segundo um é, tal como o primeiro, artigo indefinido. Contudo, é importante referir que, se no lugar do artigo indefinido, estivesse um artigo definido, a concretização deste processo elíptico já não seria possível, pois «os artigos definidos não podem surgir isolados, quer por elipse do Nome, quer por movimento do Nome e do complemento (ao contrário dos indefinidos e de outras formas de quantificação)» (Gramática da Língua Portuguesa, Maria Helena Mira Mateus e outros, 2003, p.347), ex.: «* Eu comprei o livro, e tu também compraste o»; «Eu comprei um livro, e tu também compraste um».

Será ainda interessante notar que ao movimento inverso à elipse se chama processo enfático<...

Pergunta:

Em frases iniciadas pela conjunção porque é aceitável usar a ênclise, ou é totalmente errado?

Ex.: «Porque os contos de fadas tornam-se realidade, convidamos...»

Obrigada pelo esclarecimento!

Resposta:

De forma resumida, direi que, na língua portuguesa, existem basicamente dois grandes padrões de ordem para os pronomes clíticos: à direita do verbo (posição enclítica), ou à esquerda do verbo (posição proclítica), sendo que a opção por um ou por outro não é livre, isto é, existem condições que determinam obrigatoriamente a ordem cl-V e condições que exigem a ordem V-cl.

No caso concreto da frase que a consulente propõe, constatamos estar na presença de uma oração subordinada causal introduzida pela conjunção subordinativa porque.

Ora, tanto na Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus e outros, como na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cintra e Cunha, as orações subordinadas finitas (todas as formas verbais à excepção das do infinitivo, gerúndio e particípio) são apontadas como um dos contextos que obrigam à opção pela próclise.

Deste modo, a presença de conjunções subordinativas que introduzem orações subordinadas adverbiais (causais, comparativas, concessivas, condicionais, consecutivas, finais, temporais) obriga ao uso da próclise, isto é, à opção pela ordem cl-V.

Assim, no contexto da frase sugerida, a opção correcta será cl-V: «Porque os contos de fadas se tornam realidade, convidamos...»

Valerá ainda a pena acrescentar que, no português do Brasil, o uso da próclise não só é obrigatório no contexto aqui analisado (orações subordinadas finitas), como também é possível – ou até mesmo preferencial –, ao contrário do que acontece no português europeu, no âmbito das orações abs...

Pergunta:

Gostaria de saber se pode utilizar-se o termo "termostatizado".

Não encontro nos dicionários, no entanto, ao colocar esta palavra na Internet, aparecem várias páginas onde este termo é utilizado.

Grata pela vossa resposta.

Resposta:

De facto, o adjectivo termostatizado não surge em nenhum dos instrumentos linguísticos consultados. Porém, no sítio oficial do Centro de Química-Física Molecular português, este é um termo utilizado com bastante frequência para descrever, por exemplo, características de espectrofotómetros.    

Por outro lado, através de uma rápida pesquisa via Google, por exemplo, facilmente nos apercebemos de que a referida palavra, e outras da mesma família, como termostatização, são bastas vezes utilizadas, sobretudo em contextos relacionados com a área da física (térmica).

Assim, na frase «porta-amostras para líquidos termostatizado (-20 a 90 ºC)», e partindo da definição da palavra termóstato, podemos dizer que, neste contexto específico, o adjectivo termostatizado significará «contendo um dispositivo que controla automaticamente as variações de temperatura». (Fontes: Infopédia e Dicionário Houaiss.)

Pergunta:

Gostava de saber se alguma destas expressões leva hífen: «boas graças», «meio gás», «meia maratona», «carrinhos de choque», «mal semeado».

Obrigado.

Resposta:

Nenhuma das expressões sugeridas pelo consulente se escreve com hífen, nem à luz do Acordo Ortográfico de 1990 nem ao abrigo de outra norma ortográfica anteriormente aplicada.

N. E. (9/10/2017) – A palavra meia-maratona tem hífen no Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua Portuguesa) e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Instituto Internacional da Língua Portuguesa). Nos restantes vocabulários ortográficos não se encontra registo deste composto, o que é indicativo de a hifenização desta sequência ainda não reunir ainda consenso. Mesmo assim, tendo em atenção que se trata de uma modalidade desportiva (é uma prova autónoma globalmente chamada meia-maratona), e não da designação de uma fração da maratona (não é parte da prova que se chama maratona), é de recomendar a forma hifenizada – meia-maratona.

 

N.E. – Sobre os critérios de hifenização depois do Acordo Ortográfico de 1990, acompanhe-se a explicação do gramático brasileiro Sérgio Nogueira em registo de vídeo: