Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Se itinerário significa «indicação do caminho a percorrer»/«roteiro» (portanto, descritivo de algo exógeno ao próprio termo) ou, alternativamente, «descrição de viagem» (no sentido de relato temporal de uma progressão em dimensões físicas), não é incorreta a adoção do termo para designar o caminho concreto, em si mesmo, como decorre da nomenclatura usada na classificação das nossas estradas (IP — Itinerário Principal e IC — Itinerário Complementar)?

Resposta:

Para além das definições sugeridas pelo estimado consulente, podemos constatar que o Dicionário Houaiss, por exemplo, acrescenta que a palavra itinerário deriva do latim itinerarĭus, a, um, «de viagem; de estrada», podendo significar «caminho a seguir, ou seguido, para ir de um lugar a outro»; o Novo Dicionário Aurélio apresenta igualmente como possíveis definições do vocábulo em análise «caminho que se vai percorrer, ou se percorreu», «caminho, trajeto, percurso»; seguindo esta mesma linha de raciocínio, o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (Lexicoteca, Círculo de Leitores) acolhe como primeira acepção do substantivo masculino itinerário «caminho a percorrer para se dirigir de um para outro lugar»; finalmente, o Dicionário Actual da Língua Portuguesa (Edições Asa) sugere os termos «caminho; percurso; rota» como sinónimos da palavra itinerário.

Deste modo, parece-me correcta a aplicação do termo itinerário na nomenclatura oficial usada para classificar as estradas portuguesas.

Poderemos, no entanto, reflectir um pouco sobre as razões e a respectiva validade da distinção oficial estabelecida entre estrada e itinerário. Vejamos: de acordo com a generalidade dos dicionários de língua portuguesa consultados, numa «estrada» podem transitar veículos, pessoas ou animais. Porém, segundo o Plano Rodoviário Nacional (PRN) e o

Pergunta:

Gostaria de saber se o nome de uma especialidade médica está adequado. A «cirurgia da mão» não deveria chamar-se «cirurgia de mão»? Existe uma especialidade chamada «cirurgia de cabeça e pescoço», por exemplo.

Agradeço pela oportunidade!

Resposta:

Ao contrário do que acontece em Portugal, onde a Ordem dos Médicos parece não reconhecer as referidas especialidades, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) elenca «cirurgia da mão» como uma especialidade médica, a par justamente, por exemplo, da «cirurgia de cabeça e pescoço», tal como bem refere e nota o estimado consulente.1

Sendo assim, e apesar de não se me afigurar evidente a causa de tal diferenciação ao nível da designação formal das duas especialidades, isto é, a opção pelo uso da preposição de + artigo definido (= da), no primeiro caso, e pela preposição na sua forma, digamos, simples, no segundo caso (= de), será importante termos em conta que a formulação «de mão» se encontra reservada, na língua portuguesa para contextos muito concretos, como é o caso de «mala de mão», «bagagem de mão» (que podem ser levadas na mão), «carrinho de mão» (que pode ser transportado com a mão) ou «aperto de mão» (cumprimento feito, por assim dizer, com o recurso à mão). (Fontes: Infopédia, Priberam e Dicionário Houaiss.)

Neste sentido, parece-me aceitável, até como forma de desambiguação sintáctica, o recurso à contracção da preposição de com o artigo definido a (

Pergunta:

Antes de tudo, obrigado pelo serviço!

Esta oração gerou dúvidas em sala de aula: «Os torcedores consideram o técnico incapaz em suas funções.» O excelente professor analisa o termo «em suas funções» como complemento nominal de «incapaz», mas isso gerou dúvidas. Primeiro, só encontramos em Bechara [Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 577] e outras gramáticas a palavra incapaz regendo de e para. Segundo, achamos que incapaz já estaria com seu sentido completo, sem a necessidade de complemento ou explicitação. Por último, ficamos com a impressão de que «em suas funções» poderia significar «incapaz enquanto técnico» ou «incapaz como técnico», o que poderia trazer muito mais uma interpretação de circunstância do que de complemento nominal.

Bem, obrigado pelo espaço para perguntas, e ficamos aqui na esperança de dirimir essas dúvidas!

Resposta:

Segundo o Dicionário Terminológico (DT), o complemento do nome (ou complemento nominal) é «seleccionado por um nome [podendo] ser um grupo preposicional [...] ou, menos frequentemente, um grupo adjectival [...]. Os complementos do nome são sempre de preenchimento opcional». Assim, são apresentados os seguintes exemplos:

(a) [A ideia [de que o João aceitaria o lugar]] é absurda. ([de que o João aceitaria o lugar] é o complemento do nome ideia no grupo nominal [a ideia de que o João aceitaria o lugar])

(b) [A construção [do edifício]] parece-me difícil. ([do edifício] é complemento do nome construção no grupo nominal [a construção do edifício])

(c) [A pesca [baleeira]] tem vindo a aumentar. ([baleeira] é o complemento do nome pesca no grupo nominal [a pesca baleeira])

(d) [A oferta [de livros] [às bibliotecas escolares]] é importante.  ([de livros] e [às bibliotecas escolares] são complementos do nome oferta no grupo nominal [a oferta de livros às bibliotecas escolares])

Como complemento da informação veiculada pelo DT, será também de todo o interesse, creio eu, ler esta resposta de Edite Prada, que clarifica de forma exemplar alguns aspectos mais polémicos e cinzentos associados à definição de complemento do nome, nomeadamente no que diz respeito à difí...

Pergunta:

A pronúncia da palavra nosso, o /o/ tónico é aberto, semiaberto, fechado, ou semifechado?

Obrigado antecipadamente.

Resposta:

A palavra nosso dever-se-á pronunciar "nóssu", [nɔsu] (cf. Priberam), tal como acontece, por exemplo, com posso, [pɔsu].

Sendo assim, o o tónico em análise será semiaberto, na linha do que é proposto por Cintra e Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 36.

Ainda de acordo com a referida gramática, no que diz respeito ao grau de abertura das vogais tónicas orais, a única considerada verdadeiramente aberta será o [a], como em «pá» ou «gato» (gátu). O [i] e o [u] são classificadas como fechadas, o [e] («medo», mêdu), o [ɐ] («cama») e o [o] («corro», côrru) como semifechadas, e o [ɛ] («pé»), juntamente com o já referenciado [ɔ], como semiabertas.

Valerá ainda a pena dizer que a utilização desta terminologia está intimamente relacionada com o movimento e consequente posição da língua no momento da pronúncia das respectivas vogais. Deste modo, o som [a] é considerado aberto por ser articulado com a língua mais baixa do que a posição de descanso; o [i] e o [u] são classificados como fechados por serem pronunciados com a língua elevada; o [ɐ] e o [o] são chamados semifechados pelo facto de se dizerem com a língua elevada, mas não tanto quanto na realização de [u], por exemplo; finalmente, o [ɛ] e o [ɔ] são...

Pergunta:

Devo usar a vírgula antes do não na construção abaixo?

«Ela comprou não fruta, mas legumes.»

Entendo que não é o mesmo caso da construção com «não só... mas também», certo?

«Ela comprou não só frutas, mas também legumes.»

Poderiam por favor explicar a diferença?

Muito obrigada!

Resposta:

Vejamos: no que diz respeito à primeira frase sugerida, não poderá ser usada vírgula antes do marcador de negação não, pois, neste caso, apesar da inversão verificada, a negação continua a ter «escopo sobre o predicado» «comprou frutas» (Maria Helena Mira Mateus, Gramática da Língua Portuguesa, 2003, p. 771). No fundo, a ordem mais comum dos constituintes na frase em análise seria «Ela não comprou fruta, mas [comprou] legumes». Ora, sendo assim, se a configuração frásica *«Ela não, comprou fruta, mas legumes» é agramatical, já que «os termos essenciais e integrantes de uma oração [se] ligam [...] sem pausa não podendo ser separados por vírgula» (veja-se esta resposta), a construção *«Ela comprou, não fruta, mas legumes» será igualmente, por maioria de razão, agramatical. Neste caso, a inversão verificada servirá para, por motivos que dependerão do contexto comunicacional em que a citada frase se inserirá, chamar a atenção do interlocutor justamente para o facto de não ter comprado fruta, isto é, para a negação e para a íntima relação que esta estabelecerá com o complemento directo «fruta». Já a utilização da vírgula antes da conjunção coordenativa adversativa mas, na mesma frase, me parece aceitável, em linha, aliás, como o recomendado por Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pp.643/644): «Emprega-se ainda a vírgula no interior da oração [...] para separar as orações coordenadas sindéticas, salvo as introduzidas pela conjunção e Não era velho, mas parecia nunca ter sido novo».1 

A segunda frase propos...