Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ultimamente, tenho-me deparado com algumas dúvidas no que à regência verbal diz respeito. Já consultei as vossas respostas neste âmbito, mas não consigo esclarecer o que me intriga.

Por exemplo, nas frases:

«Lembra-te de mim» ou «Eu lembro-me do Pedro, meu colega da primária», é certo que aqui a forma verbal está regida pela preposição de. No entanto, quando o verbo introduz uma oração completiva, esta preposição deve ou não estar presente? Isto é, seria correto dizermos: «Lembra-te que acordar cedo faz bem e faz crescer», ou «Lembra-te de que acordar cedo faz bem e faz crescer»?

Dúvida semelhante surge em relação a outros verbos: «Eu já me apercebi do meu erro» e «Devemos aperceber-nos (de) que ninguém é perfeito».

Agradecia que me pudessem esclarecer relativamente a este assunto, para o qual não encontrei, até agora, nenhuma resposta.

Resposta:

Julgo que, na linha do que acontece, por exemplo, com o verbo gostar, a preposição de, em contextos similares aos avançados aqui pela consulente, deverá ser lexicalizada (o asterisco significa agramaticalidade do enunciado):

1. «As recordações de infância de que eu mais gosto remontam à aldeia dos meus avós»;

2. *«As recordações de infância que eu mais gosto remontam à aldeia dos meus avós»;

3. «Os momentos de infância de que eu me lembro melhor remontam à aldeia dos meus avós»;

4. *«Os momentos de infância que eu me lembro melhor remontam à aldeia dos meus avós».

No que diz respeito mais concretamente às orações completivas, creio que o raciocínio não deverá divergir muito do proposto. Aliás, Mateus e outros, por exemplo, na Gramática da Língua Portuguesa, p. 615, notam claramente o seguinte: «As preposições que antecedem mais frequentemente completivas são a (com verbos como arriscar-se, atender, conduzir, dever-se, habituar-se, levar, limitar-se, opor-se, recusar-se, resistir), de (com verbos como

Pergunta:

Veja-se a seguinte estrofe:

Oh! pesadelo terrível

Oh! sofrimento brutal

Que me faz (fazes) implorar

Pelo instante final

Considerando que o sujeito poético se dirige a pesadelo e sofrimento personificados, exercendo esses termos a função de vocativo, pergunto qual a concordância correta para o verbo fazer. Parece-me que, conforme se considere a oração adjetiva como restritiva ou explicativa, haveria a possibilidade de estarem corretas as duas concordâncias. Outras frases semelhantes: «Oh! velho amigo, que me vens alegrar»; «Oh! velho amigo que me vem alegrar».

Gostaria de uma análise a respeito, a qual desde já agradeço.

Resposta:

Segundo Lindley Cintra e Celso Cunha, «no interior da oração, [a vírgula] serve [...] para isolar o vocativo: — Que ideias tétricas, minha senhora! [...] — D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? [...] — Como é que tu te chamas, ó rapaz? [...]» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 641).

Assim, no contexto sugerido pelo prezado consulente, os constituintes «Oh! pesadelo terrível»/«Oh! sofrimento brutal», para serem considerados, efetivamente, do ponto de vista sintático, vocativos, deveriam, em princípio, estar isolados por vírgulas. Não o estando, e recorrendo o enunciador, paralelamente, à 3.ª pessoa do singular/plural do verbo fazer («faz»/«fazem»), podemos considerar que se trata, eventualmente, de um possível desabafo do sujeito que enuncia a citada frase, refletindo este, por exemplo, sobre a situação-limite a que chegou a sua vida pessoal. Se, por outro lado, o enunciador se dirige, de facto, através do recurso à personificação, ao «pesadelo» e ao «sofrimento», julgo que seria importante e útil optar pela presença da vírgula, assim como pela utilização do verbo fazer na 2.ª pessoa do singular/plural («fazes» «fazeis»).

Naturalmente que, neste enquadramento específico, o posterior surgimento de uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa será, digamos assim, uma consequência colateral da colocação da vírgula, que deverá ter sempre como objetivo central o isolamento do(s) vocativo(s).

Na frase «Oh! velho amigo, que me vem alegrar» (com o verbo vir na 3.ª pessoa do singular), não existindo, à partida, uma personificação, poder-se-á considerar que estamos igualmente perante uma espécie de desabafo, feito, nes...

Pergunta:

Depois de ler vários exemplos, para além da própria definição que o Dicionário Terminológico apresenta, não consigo discernir o melhor modo como explicar aos meus alunos a diferença entre um modificador de frase e um modificador de grupo verbal. Poder-me-ão ajudar nesta tarefa?

Resposta:

De forma algo genérica, podemos dizer que a distinção essencial entre modificador verbal e modificador frásico reside no facto de o primeiro fazer parte do predicado e de o segundo ficar excluído dele. Por exemplo:

«Provavelmente, ontem, deixei as chaves do carro em casa da minha mãe.»

No enunciado que aqui proponho, verificamos que o constituinte «ontem» integra o grupo verbal, e «provavelmente», não. Assim, «ontem» deverá ser classificado como modificador verbal, e «provavelmente» como modificador frásico.

A forma mais clara de ensinar a distinguir as duas subclasses de modificador aqui em análise talvez seja recorrer, na linha do já proposto por Carlos Rocha, nesta resposta, a testes de interrogação e de negação. Por princípio, os modificadores frásicos não podem ser negados nem interrogados, ao passo que os modificadores verbais podem (o asterisco indica agramaticalidade do enunciado):

Interrogação:

* «Foi provavelmente que ontem deixei as chaves do carro em casa da minha mãe?»

«Foi ontem que provavelmente deixei as chaves do carro em casa da minha mãe?»

Negação:

«Provavelmente, não ontem, mas hoje, deixei as chaves do carro em casa da minha mãe.»

*«Não provavelmente, mas seriamente, ontem, deixei as chaves do carro em casa da minha mãe.»

(cf. Mateus e outros, Gramá...

Pergunta:

Num exercício proposto, a expressão «um sonho» é apresentada com um valor mais restritivo do que «o sonho». Não entendo o porquê desta classificação dado que o é um artigo definido, e um é indefinido.

Resposta:

Pois, entendo a dúvida do consulente. Porém, neste caso, a classificação proposta estará certamente vinculada a um determinado contexto a que não temos aqui acesso.

Vejamos, por exemplo, numa perspetiva comparativa, este excerto de um famoso poema de António Gedeão:

«Eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida [...]»,

e este outro do conhecido discurso de Martin Luther King:

«Tenho um sonho de que um dia esta nação se irá erguer [...].»

No primeiro caso, «o sonho» acaba por ser sinónimo de «capacidade de sonhar», independentemente do seu conteúdo, isto é, daquilo que se possa sonhar.

No segundo enunciado, «um sonho» refere-se a um desejo muito concreto — neste caso, de ver a nação (americana) erguida.

Assim, o excerto de Martin Luther King não se reporta ao conceito genérico de sonho (como acontece no enquadramento dos versos do poema de António Gedeão), mas, sim, a uma forte vontade de atingir um objetivo bem delimitado.

Posto isto, julgo poder afirmar que a primeira expressão — «o sonho» (com artigo definido) — é menos restritiva (para usar a expressão proposta pelo consulente) e bem mais ampla do que a segunda — «um sonho» (com artigo indefinido), cuja ocorrência parece ser mais restritiva e menos ampla, como vimos, do que a primeira.

Pergunta:

Qual é o correto?

«Este fato se faz presente»?

«Estes fatos se fazem presente ou presentes»?

Trata-se de uma locução com valor adverbial (e, neste caso, seria invariável: «os fatos se fizeram presente»?).

Ou presente é adjetivo «(isto está presente», «se faz presente»; «estas coisas estão presentes», «se fazem presentes»)?

Resposta:

O verbo fazer é aqui utilizado na sua forma pronominal, significando «tornar-se [...], vir a ser» (Infopédia, Priberam).

Deste modo, fazer deverá ser encarado, neste contexto, como verbo copulativo1, potencial gerador, portanto, de predicativos de sujeito: «estes fatos se fazem/se tornam/estão presentes».

Assim, e respondendo diretamente à questão apresentada pela estimada consulente, tendo em conta que, neste caso, o predicativo do sujeito («presente») é um adjetivo, a formulação correta deverá residir na opção pelo uso do plural — presentes —, pois, «se o constituinte com a relação gramatical de predicativo do sujeito for um predicador de natureza adjetival, concorda em género e número com o sujeito [= fatos]» (Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, p. 291).

Duas notas finais:

1) Em português europeu, a formulação mais comummente usada do enunciado proposto deverá ser: «estes factos fazem-se/tornam-se/estão presentes»;

2) É bastante comum encontrar, sobretudo ao nível da linguagem de cariz jurídico, o seguinte enquadramento da fórmula linguística em análise: «ficam convocados a se fazerem (fazerem-se) presentes [...]» (isto é, «ficam convocados a estarem presentes [...]».

1 De acordo com Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, p. 302, são considerados verbos copulativos...