Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

De entre «feridos ligeiros» e «feridos leves», qual é a expressão mais correcta em oposição a «feridos graves»?

Resposta:

Não parece existir qualquer diferença ao nível da utilização das expressões «feridos ligeiros» e «feridos leves». Leia-se, por exemplo, esta notícia, do Jornal de Notícias, ou o conteúdo deste blogue oficial da Cruz Vermelha Portuguesa, nos quais as duas formulações são usadas alternadamente e de forma indiscriminada.

Aliás, esta conclusão é corroborada, por exemplo, por este estudo do Instituto Superior Técnico, de Rui Fernando Sousa Pinto (orientado pelo prof. dr. João Manuel Pereira Dias), intitulado Reconstituição de Acidentes Rodoviários com Veículos de Duas Rodas, 2008, p. 2: «Ferido leve/ligeiro – Vítima de acidente que não seja considerada ferido grave.»

Pergunta:

Em finanças empresariais usam-se muito os termos antecipado e postecipado para designar capitais ou juros que vencem no início ou no fim de determinado período, respetivamente (exemplos de expressões correntes: «rendas postecipadas», «juros postecipados»). Também se encontra com frequência escrito postcipado (sem o e).

Das pesquisas que já fiz, sou levado a pensar que as palavras postecipado e postcipado não existem. Se assim for, tratando-se de um termo "corrente" (muito utilizado) nesta área específica, que sugestões para os substituir? Em resposta à questão 15 314 (ano de 2005) foram sugeridas duas alternativas que, com honestidade, não me parecem nada frequentes na gíria financeira (diz-se habitualmente «a renda é de termos postecipados», mas não «a renda é de termos a posteriori» ou, menos ainda, «a renda é de termos de pagamento posterior»).

Pergunta objetiva: é muito grave usar neste contexto (gíria financeira) a palavra postecipado?

Resposta:

Não encontro o vocábulo postecipar em nenhum dos dicionários ou vocabulários ortográficos de referência consultados.

Contudo, tal como bem nota o estimado consulente, este é um termo comummente usado, sobretudo em contextos de âmbito económico, financeiro e até matemático.

E, de facto, esta é uma palavra acolhida, por exemplo, pelo projeto Lextec (léxico técnico – área da banca), em desenvolvimento pelo Instituto Camões. A definição aí proposta é compatível com o enquadramento sugerido pelo consulente: «juro pago no final do seu período de contagem», ex.: «Os BT [Bilhetes do Tesouro] são emitidos por 91, 182 ou 364 dias, subscritos e transaccionados a "desconto por dentro", e vencem juros postecipados à taxa que resulta das condições em que foram subscritos no Mercado Primário. Em Mercado Secundário, as taxas de juro são negociadas entre os intervenientes» (Lextec).

Deste modo, julgo que não só não é grave usar o referido termo como me parece, aliás, ser o mais adequado, não sendo necessário, do meu ponto de vista, recorrer a outras palavras.

Pergunta:

Na frase «Desatou a correr pela aldeia fora», o vocábulo fora continua a pertencer à classe dos advérbios? Se assim for, a que subclasse pertence? Não consigo integrá-lo em nenhuma. Aqui o advérbio fora modifica o nome e não o predicado, logo não pode ser um advérbio de predicado, mas também não se encaixa em nenhuma das outras classes.

O mesmo acontece com o advérbio dentro na expressão «Pela casa dentro». Na gramática tradicional, eram advérbios de lugar, e na nova terminologia? Pensando melhor, «pela aldeia fora» é uma locução adverbial? Sendo assim, classifico-a naturalmente como locução adverbial de predicado. Será? Não vejo outra hipótese.

Resposta:

No enquadramento enunciado pela estimada consulente, a palavra fora é utilizada como sinónimo de «sempre adiante; afora» (Dicionário Houaiss); «ao longo de; por toda a extensão» (Infopédia); «para a frente, no tempo ou no espaço» (Dicionário Priberam).

Por outro lado, o verbo desatar significa, na frase em análise, «começar desesperadamente a» (Dicionário Priberam); «manifestar(-se), soltar(-se) de súbito; prorromper (em), romper (em)» (Dicionário Houaiss); «começar de repente» (Infopédia).

Assim, tendo em conta o exposto, podemos, com alguma segurança, sugerir a seguinte paráfrase do enunciado proposto: «Começou de repente a correr pela aldeia adiante/ao longo da aldeia/por toda a extensão da aldeia.»

Posto isto, será ainda de acrescentar ao nosso raciocínio o facto de todos os instrumentos linguísticos de referência consultados (p. ex.: Dicionário Houaiss, Dicionário Priberam, Infopédia, Novo Dicionário Aurélio, Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, p. 539, Gramática da Língua Portuguesa, de Mateus e outros, p. 418) ...

Pergunta:

De antemão, peço desculpas pelas muitas perguntas. Na frase «Eu permiti aos alunos estudar/estudarem Português»:

O sujeito de «estudar» é preposicionado, ou a preposição é expletiva?

O verbo é transitivo direto e indireto?

A expressão «aos alunos» é objeto indireto e sujeito?

Gostaria que respondessem a todas as perguntas da maneira mais didática possível, pois tenho certa dificuldade com a gramática da língua portuguesa.

Resposta:

Ora essa, não tem que pedir desculpas. Como se pode ler no sítio oficial do Ciberdúvidas, «ter dúvidas é saber». Por isso, é este o local certo para o fazer.

Esta constatação não anula, porém, como é evidente, a complexidade das questões apresentadas. Tentarei, ainda assim, ser o mais claro possível na minha exposição, alertando de antemão o caro consulente para a dificuldade de tal tarefa.

O enunciado proposto pelo consulente contém uma oração completiva (ou integrante, na tradição gramatical luso-brasileira) não finita (isto é, que apresenta o verbo no infinitivo, flexionado ou não flexionado — neste caso, estudarem ou estudar), selecionada pelo verbo declarativo de ordem1 permitir: «estudar/estudarem Português».

Posto isto, será ainda fundamental percebermos que o sujeito da oração completiva em análise — estudar(em) Português — não se encontra lexicalmente realizado, sendo que o sujeito da oração superior — «Eu permiti aos alunos» — é, evidentemente, «Eu».

Assim, quando uma oração completiva com as características aqui elencadas «ocorre como complemento de um verbo [neste caso, a completiva «estudar(em) Português» é complemento direto do verbo permitir — «Eu permiti isso aos alunos»/«eu permiti-o aos alunos»], o seu sujeito sem realização lexical tem usualmente a sua referência fixada por um dos argumentos do verbo da frase superior» (Mateus e outros, op. cit. p. 632). A este tipo de construção chamam Mateus e outros «de controlo».

Deste modo, «quando é o sujeito da frase superior, lexicalmente realizado ou não, que controla a referência do sujeito foneticamente nulo da completiva de infinitivo não flexionado, a constru...

Pergunta:

A minha pergunta é, na verdade, muito simples. Gostaria de saber se a palavra deveniente existe na língua portuguesa, uma vez que deparei com ela ao ler uma obra jurídica de um autor português bastante reconhecido, embora não a tenha encontrado no dicionário. Aqui vai o contexto em que a palavra se insere: «o problema da racionalizada realização judicativo-decisória como uma competência dos tribunais que deverão, para o efeito, pressupor o mérito jurídico do caso decidendo, o pré-objectivado sistema jurídico e o deveniente específico sentido da juridicidade.»

Resposta:

Não encontro a forma deveniente registrada em nenhum dos instrumentos linguísticos de referência consultados.

Porém, é de notar que a referida palavra surge bastas vezes, associada sobretudo a contextos de cariz filosófico: «De dentro do real – e como ingrediência dele – pensamos, recortando na totalidade deveniente em que lateja focos e objectos de interesse [...]»; «[...] buscando o registo da fundamentação que nos desvenda a bateria de supostos e estruturas que comandam a fenomenalização deveniente e as suas rotas de futuro [...]» (José Barata-Moura, comunicação «Filosofia, é cousa de escrever?», 2004, disponível em linha no sítio oficial da Associação de Professores de Filosofia).

Assim, nestes contextos específicos, este será um conceito associado ao verbo devenir (do francês devenir: tornar-se – Priberam), que estabelece uma relação de sinonímia com um outro verbo, devir (Dicionário Houaiss), e que significa «vir a ser; tornar-se, transformar-se, fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; vir a ser» (Dicionário Houaiss).

Deste modo, no enunciado transcrito pelo estimado consulente, deveniente significará, numa interpretação porventura algo livre e flexível, «consequente», «subsequente», «aquele que há-de vir a ser o sentido específico da juridicidade».