Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho ouvido (e lido) referências a "vitimação" e "vitimização": "os inquéritos de vitimação demonstram que ..." e "dos estudos de vitimização realizados, os investigadores ...".
No dicionário Lello (ed. 1995) e no dicionário do sítio da Porto Editora (http://www.portoeditora.pt/dol/default.asp) os termos supra são desconhecidos.
Gostaria, por favor, de saber:
1 - São termos correctos? (neologismos? anglicismos?)
2 - Têm a mesma significação?
3 - Podem ser usados indistintamente (à semelhança de ouro/oiro e touro/toiro)?
Cumprimentos e obrigado.

Resposta:

São termos correctos. Existem ambos na língua portuguesa, registados em dicionários.

Vitimação é palavra mais antiga. Poderá ver o seu registo na 10.ª edição (1949-1958) do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva (os prestigiados dicionários de Morais). Palavra formada por derivação do verbo vitimar, significa acto ou efeito de vitimar, tendo este verbo as seguintes acepções: fazer vítima, reduzir à condição de vítima, matar, imolar, sacrificar, oferecer a vida de um ser vivo em troca de protecção divina, prejudicar, danificar, destruir.

Vitimização é termo mais recente, registado no novíssimo (Abril de 2001) Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, com o significado de acção de vitimizar (tornar alguém vítima ou tornar-se vítima). É, pois, forma derivada deste verbo vitimizar.

Os significados são próximos e em certos contextos podem permutar. No entanto, os primeiros termos têm uma conotação de acção física, a acção de tornar algo ou alguém vítima matando-a, destruindo-a (a pessoa é assassinada, é morta por alguém que a vitimou; as colheitas são destruídas pela geada que as vitimou), enquanto os segundos têm uma conotação mais genérica, mais abrangente, referindo tanto a morte física, como o prejuízo material de alguém ou o prejuízo moral. Por outro lado, estes últimos termos são usados referindo-se a pessoas e não a elementos da natureza ou coisas.

Pergunta:

Onde o Português achou fosse (ir)?

Não é o verbo ser?

Resposta:

"Fosse" é uma forma do verbo ir no pretérito imperfeito do conjuntivo.

Na flexão deste verbo aparece o supletivismo verbal, ou seja, o verbo ir, proveniente do latino ire (ia, irei, iria, indo, ido), completa a sua flexão com formas oriundas de verbos diferentes, designadamente, de vadere (vou, vais, vai, vamos, vão; vá, vás, vades) e de esse, cuja forma do perfeito era fui. Assim, o pretérito perfeito do indicativo (fui, foste, foi, fomos, fostes, foram), o pretérito mais-que-perfeito do indicativo (fora, foras, fora, fôramos, fôreis, foram), o futuro do conjuntivo (for, fores, for, formos, fordes, forem) e o pretérito imperfeito do conjuntivo (fosse, fosses, fosse, fôssemos, fôsseis, fossem) são formados a partir desse tema do perfeito (fui).

Em latim ire significava ir, caminhar; vadere também significava ir, caminhar, dirigir-se para, marchar, e esse significava, além de ser, existir, morar, residir, estar num lugar e, ainda: ir, vir, chegar. A proximidade de sentido em muitas das utilizações destes três verbos levou a que, na evolução para o português, algumas das formas de ire fossem substituídas pelas de vadere e de esse.

Pergunta:

Abençoe ó Deus!

Todos que adentrarem esta casa.

Na frase acima, qual é o correto: esta, nessa, ou nesta?

Resposta:

Se quiser utilizar o verbo adentrar, poderá escrever "Abençoai, ó Deus, todos os que adentrarem nesta (ou por esta) casa!"

Também pode usar o verbo entrar: "Abençoai, ó Deus, todos os que entrarem nesta casa!" ou "Abençoai, Deus, todos os que entrarem nesta casa!"

Justificação:

1. Deverá usar a forma imperativa do verbo abençoar na 2.ª pessoa do plural (abençoai) porque, em princípio, trata-se Deus por "Vós" e não por "você".
2. Deverá escolher o demonstrativo "esta" e não "essa", porque se trata (creio) de uma saudação escrita ou dita à entrada de uma casa, dando as boas-vindas a quem entra. Se for uma frase dita de fora de uma casa por alguém que está distante dela, então, usará "essa". Ou seja, se utilizar "esta", significa que está junto ou dentro da casa; se utilizar "essa" significa que está afastado dela.
3. Se quiser utilizar o verbo adentrar e com ele traduzir a ideia física de penetrar num local (como me parece), deverá usar uma das preposições (em ou por), juntamente com o demonstrativo "esta".
4. Se escolher o verbo entrar, terá de empregar "nesta", contracção da preposição em + esta, pois esse verbo é regido da preposição "em".
5. O termo adentrar também tem o significado imaterial de ocupar o interior de, penetrar psiquicamente, e, nesse caso, segue-se um complemento directo e não um complemento circunstancial de lugar, não se utilizando, pois, a preposição.
6. Finalmente, eu optaria pelo verbo entrar, em vez de adentrar porque este último verbo não é usado em Portugal no sentido físico que lhe pretende dar. Aliás, o seu emprego é tão inusitado neste país, que o exemplo literário que aparece na 10.ª edição do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva (1949-1958), é repetido no, recentemente lançado (Abril de 2001), Dicionário da Língua Portuguesa Contempo...

Pergunta:

A palavra obsessão é para mim a mais estranha da língua portuguesa. Diz-se obsessão mas diz-se obcecado e obsessivo. Porquê?

Resposta:

A grafia das palavras obcecado, obsessão e obsessivo justifica-se pela etimologia.

Obcecado é um adjectivo formado do particípio passado do verbo obcecar, que provém do latim obcœcare, com as seguintes acepções: cegar, não deixar ver, cobrir com terra, paralisar, e, ainda, em sentido figurado, tornar obscuro, ininteligível. Assim, obcecado significa, rigorosamente, que está cego, paralisado, que não vê claramente o que se passa, que tem o espírito ou o entendimento obscurecido, ofuscado.

Obsessão provém do latim obsessione-, termo que significava acto de cercar, assédio, cerco, bloqueio, ocupação de uma estrada. Este significado primitivo evoluiu para outros: impertinência excessiva, acção ou efeito de importunar, de vexar alguém com persistência e assiduidade ou, ainda, estado de pessoa que se crê atormentada, perseguida pelo espírito maligno, pelo diabo e, em sentido figurado, ideia fixa, preocupação constante, mania.

Obsessivo é adjectivo da mesma família de obsessão, formado por derivação do adjectivo obsesso, proveniente do latim obsessu- (particípio passado de obsideo, com os significados de cercado, sitiado, bloqueado, assaltado, acometido, atacado, ocupado, invadido – sentido próprio e figurado). Obsessivo significa, pois, em que há obsessão, que cerca, que ocupa a mente de modo pertinaz, persistente.

Assim, os termos obcecado e obsessivo, provenientes de étimos diferentes, são sentidos, no português actual, como próximos a nível semântico.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem da expressão «Ver Braga por um canudo».

Grata pela atenção.

Resposta:

Várias são as expressões conhecidas relacionadas com o prestígio da cidade de Braga.

«Ver Braga por um canudo» é uma delas. Significa não alcançar o que se deseja, querer algo e não o conseguir, ver frustradas as expectativas, ficar logrado, enganado, ludibriado.

Não tendo conhecimento de qualquer ocorrência que esteja na origem da expressão, apenas a interpreto a partir das palavras que a compõem.

Braga foi (é) cidade de grande nomeada, sede de arcebispado, com importância reconhecida em todo o país. É natural, pois que ir a Braga, estar em Braga, pertencer à cidade de Braga, fosse almejado pelas pessoas em geral que conheciam a fama da cidade.

Canudo é termo que designa o óculo de alcance que permite ver algo que está a uma grande distância. Quando se vê algo por um canudo significa que não se está ao pé, que isso está longe, fisicamente inacessível.

Assim, Braga, com o valor metafórico de algo de muito bom, cobiçado, desejado, surge como inalcançável, e de uma forma ainda mais frustrante, porque se sabe que existe, se vê de longe, havendo a percepção da existência, mas não a posse.

 

CfAinda «Ver Braga por um canudo»“És de Braga?” Ou estás a vê-la por um “canudo”? Dizeres de Braga inspiram postais