Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Já aqui vi algumas questões como aquela que irei expor, mas a resposta não me parece clara. Desejo ser elucidado de forma conclusiva. Usando a seguinte frase (isolada, sem qualquer contexto) como exemplo, «De forma alguma é azul», estou a negar que é azul, ou estou a dizer que de alguma forma é azul? Se estou correcto (e como vem descrito numa das respostas às questões anteriormente colocadas), só posso usar a expressão «de forma alguma» com sentido de negação quando na mesma sentença ela é acompanhada de uma negação. Ou seja, só poderei negar (utilizando a expressão «de forma alguma») que é azul da seguinte forma: «Não é azul de forma alguma.» De outra maneira, não é possível numa frase isolada fazer uma negação, utilizando apenas a expressão «de forma alguma» (sem outra forma de negação). Inequivocamente pode-se utilizar: «De forma nenhuma é azul.» Que é justamente o contrário de «De forma alguma é azul.»

Numa das questões colocadas: «[Pergunta] Quando nos queremos referir a algo com que, por exemplo, não estamos de acordo, como nos devemos exprimir? "De forma alguma" ou "De forma nenhuma"?

[Resposta] É correcto algum com sentido negativo (= nenhum), quando vem depois de um substantivo. Até o nosso grande Camões o empregou n´Os Lusíadas, I, 71: "Os segredos daquela Eternidade A quem juízo algum não alcançou!"»

Ao contrário do que foi explicado, nenhum não tem qualquer sentido de negação mas, sim, a palavra não, pois, se colocarmos a mesma frase sem o não, ficando «Os segredos daquela Eternidade A quem juízo algum alcançou!», perde-se o sentido de negação, permanecendo a palavra algum e retirando o não. Portanto, algum não influencia ...

Resposta:

É muito interessante a pergunta que o consulente faz. Respondo já, e depois vou tentar elucidá-lo: com a expressão «de forma alguma é azul», pretende-se dizer que algo não é azul, que não há dúvida de que não é azul, ou seja, pretende-se negar a qualidade azul atribuída seja ao que for.

Para o elucidar, vou focar três assuntos: a questão da contextualização das expressões e das frases, o significado da expressão «de forma nenhuma» e o significado de «de forma alguma».

Primeiro que tudo, é preciso dizer que as frases descontextualizadas não podem ser bem interpretadas. A pragmática ensina-nos que o contexto é determinante. Uma frase (por exemplo: «Vens lindo, meu querido!») pode, num determinado contexto, querer dizer o que os seus termos literalmente significam ou, noutro contexto, pode querer dizer precisamente o contrário. Assim, apresentar a frase «De forma alguma é azul» descontextualizada (de situação ou de texto) significa retirar-lhe elementos essenciais para a sua total compreensão. Por outro lado, esta parece-me uma frase artificial, de realização improvável. Mais natural seria um diálogo como o seguinte:

— Isso é azul?

— Não! De forma alguma!

Passando agora às expressões em causa, não parece haver dúvidas de que a frase «de forma nenhuma é azul» significa que algo não é azul. Mas também esta me parece uma frase artificial. Mais natural seria o diálogo seguinte:

— Isso é azul?

— Não! De forma nenhuma!

Concluindo este segundo assunto, não se questiona que o indefinido nenhum (do latim nec unum = nem um) tenha um valor negativo.

Pergunta:

E desta forma termina o tópico denominado "Chamar com Regência":

(...) «Assim, embora se defenda como preferível a forma "ele chamou-lhe intelectual", não poderá dizer-se que é um erro a construção "chamar de" no sentido de "chamar nomes a alguém", presente na frase "ele foi chamado de intelectual"».

Mas como pode tal?...

Se aceitarmos a construção «ele foi chamado de intelectual», teremos de aceitar também «chamaram-no de intelectual». Se aceitarmos «chamei-o de mentiroso», teremos de aceitar, por exemplo, «chamaste-o», ao invés de «chamaste-lhe»; «chamámo-lo», ao invés de «chamaste-lhe», etc. E, como bem refere M.R.M.R.: «seria, sim, incorrecto dizer “o chamam” ou “chamam-no”. A forma correcta é "lhe chamam"». «Ela chamou sábio ao professor» = «Ela chamou-lhe sábio» Em Portugal, é esta a construção correcta.

Se alguém «o chamou», foi, possivelmente, para obter a sua atenção. Se alguém lhe chamou, foi, provavelmente, um nome qualquer. E são, decididamente, coisas diferentes. O que será que me escapa?

Obrigada.

Resposta:

Não lhe escapa nada, cara consulente. Analisou muito bem a regência do verbo chamar. Acontece que fui eu quem deu as duas respostas, aquela da qual a consulente discorda e a que cita como correcta, pelo que vou tentar, então, esclarecer o meu ponto de vista.

A construção portuguesa correcta é «ele chamou-lhe intelectual, sábio ou mesmo mentiroso». Nesta frase, o verbo chamar pede um complemente directo (intelectual, sábio, mentiroso) e um indirecto (lhe). É esta a construção portuguesa correcta.

No entanto, eu não posso dizer que está errada uma construção que é usada correntemente no Brasil, que é aceite por grandes gramáticos brasileiros e que aparece em textos medievais, como explico na resposta que contesta. Apercebemo-nos de que, no Brasil, ao usar-se o verbo chamar no sentido de «acusar», se adoptou, simultaneamente, a regência deste verbo («acusar alguém de algo»). E, realmente, os exemplos normalmente utilizados contêm essa ideia de acusação, pois os epítetos ou têm carga negativa («chamaram-no de mentiroso») ou são utilizados em sentido negativo («chamaram-no de intelectual»).

Assim, apenas posso dizer que a construção portuguesa correcta é «chamaram-lhe intelectual».

Pergunta:

Gostaria de saber o processo filológico-românico das expressões dantes, d´antes e antes, para uma pesquisa de expressões de Lula e de Camões.

Grata pela atenção.

Resposta:

1. Antes (do latim ante) é um advérbio que indica prioridade de ordem, de lugar ou de tempo. Também se utiliza como advérbio de modo, no sentido de «preferencialmente», e como conjunção adversativa (no sentido de «ao contrário»).

Exemplos:

(1) Como advérbio que indica prioridade de ordem: «O meu carro é o terceiro da fila. Não estás a ver que há dois antes
(2) Como advérbio que indica prioridade de lugar: «Na estrada de Coimbra para Lisboa, Leiria fica a 80 quilómetros de Coimbra; Pombal fica antes
(3) Como advérbio que indica prioridade de tempo (= anteriormente): «Fui jantar com os meus amigos e, antes, tinha ido à cabeleireira.» «Assisti só à última cena; não sei o que se passou antes
(4) Como advérbio de modo (= preferencialmente): «Ela antes quer ser amada do que admirada.» «Antes um bom emprego do que uma boa herança.»
(5) Como conjunção adversativa: «Ela não foge do trabalho, antes o abraça com entusiasmo.»

1.1. Normalmente, este advérbio forma uma locução com a preposição de: antes de. Esta locução pode introduzir tanto uma expressão substantiva (exemplos 6, 7 e 9) como um infinitivo (exemplos 8 e 10).

Exemplos:

(6) Prioridade de lugar: «Para quem olha para o mapa de norte para sul, Coimbra fica antes de Lisboa.»
(7) Prioridade de ordem: «Numa lista alfabética, o nome dele vem antes do da irmã.»
(8) Prioridade de ordem: «Nesta receita, batem-se os ovos antes de se adicionar o leite.»
(9) Prioridade de tempo: «Faz bem comer a fruta antes da sopa.»
(10) Prioridade de tempo: «Ele vai casar antes de terminar o curso.»

1.2. Este advérbio forma uma locução conjuncional de tempo com a partícula que: antes que.

Exemplo:

(11) «Quero acabar este trabalho antes que a minha mãe chegue.»

2. Dantes (de + antes)...

Pergunta:

Já li o que está escrito sobre a origem de entrudo. Há dias, porém, alguém que "sabe" afirmou que no Carnaval, usando dos disfarces das folias da época carnavalesca, era dada a determinados prisioneiros a oportunidade de "disfarçados" visitarem os seus familiares regressando depois à reclusão. A palavra entrudo teria origem em entra-tudo...

Nesta mistura de disfarces entrava... tudo...

Terá esta história algum fundamento?

Obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

Não tenho dados para lhe dizer se o relato que faz tem algum fundamento, embora tal me pareça pouco provável.

No entanto, quanto à palavra Entrudo, posso dizer-lhe que não tem nada que ver com prisioneiros. Como referi em resposta anterior, a palavra Entrudo provém do latim introitus, que significa «acto de entrar, entrada, acesso, introdução, começo». Nos textos medievais, aparecem registados os termos entruido e entroydo. Mais tarde, o termo apresenta a grafia com i: Intrudo. O Entrudo começou por designar a noite de terça-feira, que era a entrada da Quaresma; depois a própria terça-feira e, finalmente, os três dias que precedem imediatamente a entrada da Quaresma.

Pergunta:

Gostaria de saber qual o termo mais correcto: «poder paternal», ou «poder parental»?

Muito obrigada.

Resposta:

No Código Civil português, o termo utilizado para designar o exercício de certa autoridade jurídica e moral sobre os filhos é poder paternal. Segundo o artigo 1878.º desse código, «compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens» e, segundo o artigo 1877.º do mesmo código, «os filhos estão sujeitos ao poder paternal até à maioridade ou emancipação». A palavra paternal é formada do adje{#c|}tivo latino paternus, este do substantivo pater, que significa «pai».

Quanto a parental, esta palavra também provém do latim (parentalis) e tanto significa «relativo a pai ou mãe» como «relativo a parente, ou seja, pessoa que pertence à mesma família», sendo usada, por exemplo, como o significado de «dos pais» nas expressões «licença parental», «envolvimento parental», «papel parental».