Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
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Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Era uma vez um rapaz que decidiu ir correr o mundo»:

1.º Qual a correcta divisão das orações?

2.º Qual a correcta análise sintáctica das orações? Na primeira oração o sujeito é inexistente ou é «um rapaz»? Ou «um rapaz» é o nome predicativo do sujeito?

Grata pela vossa atenção.

Resposta:

A expressão «era uma vez», que se usa para iniciar as narrativas infantis tradicionais, é invariável quer venha seguida de nome (ou nomes) no singular ou no plural. Por esse motivo, a função sintáctica desse nome tem suscitado alguma controvérsia.

No entanto, este tipo de construção (verbo no singular + sujeito no plural) pode ser atribuído a uma «irregularidade de concordância» entre sujeito e predicado.

É a explicação dada em Lições de Português, de Sousa Silveira (Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1960, pág. 218), que transcrevemos:

«A língua moderna, sobretudo na sua modalidade popular, ainda revela vestígios dessa antiga arbitrariedade [irregularidade de concordância], principalmente quando o sujeito do plural vem depois do predicado: tende este a ficar no singular como se, empregando primeiro o predicado, a pessoa que fala o deixasse no singular por ainda não ter pensado em que número vai dizer o respectivo sujeito.»

Também Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (37.ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Lucerna, 2002, pág. 559), assume e complementa esta posição:

«Na expressão, que introduz narrações, do tipo de era uma princesa, o verbo ser é intransitivo, com o significado de existir, funcionando como sujeito o substantivo seguinte, com o qual concorda:

Era uma princesa muito formosa que vivia num castelo de cristal.

Eram quatro irmãs tatibitates e a mãe delas tinha muito desgosto com esse defeito (…).

Com a expressão era uma vez uma princesa, continua o verbo ser como intransitivo e o substantivo seguinte como sujeito; todavia, como diz A. G. Kury, “...

Pergunta:

Estou com uma dúvida há tempos e não encontro a resposta. Agradeceria muito se puder me ajudar.

Gostaria de saber qual é o jeito certo de falar: «Tenho paixão por arte», ou «tenho paixão pela arte»?

Obrigado e aguardo resposta.

Resposta:

Ambas as expressões são aceitáveis, deve utilizar aquela com que melhor se identifique, já que as diferenças entre uma e outra são bastante subtis.

Ao utilizarmos a primeira expressão — «paixão por arte» — a ausência do artigo definido aponta para uma generalização do nome a que se refere: a paixão estende-se à arte em geral. Quanto à segunda expressão — paixão pela arte — a presença do artigo definido põe a tónica no nome (arte), especificando-o, como se, entre várias das suas preferências, a arte fosse a eleita, o alvo da sua paixão.

Outras expressões que se podem utilizar:

«Tenho uma paixão por arte» e «Tenho uma paixão pela arte» ou, ainda, «Sou um apaixonado por arte» e «Sou um apaixonado pela arte».

Pergunta:

Desejava saber qual a forma correcta de fazer o seguinte diálogo:

— Desculpa, querido, tu equilibras-te. — Ela largou-o e ele voltou ao seu equilibrismo.

ou

— Desculpa, querido, tu equilibras-te — ela largou-o e ele voltou ao seu equilibrismo.

ou

— Desculpa, querido, tu equilibras-te.

Ela largou-o e ele voltou ao seu equilibrismo.

Estão as três correctas?

Qual a forma aconselhável?

Resposta:

A forma canónica é a última: travessão a assinalar o discurso directo e mudança de linha a indicar a passagem do discurso directo ao indirecto.

A primeira formulação também é aceitável, com o travessão a separar a fala da personagem do discurso do narrador.

A segunda formulação é de evitar, uma vez que se está a juntar o que é discurso directo e o que é discurso indirecto. É um exemplo diferente do anterior, onde a separação é feita pelo travessão, é certo, mas também pelo ponto final da fala do locutor e com o discurso do narrador iniciado por maiúscula.

Esse travessão faria todo o sentido se existisse um verbo declarativo:

— Desculpa, querido, tu equilibras-te — disse ela. Largou-o e ele voltou ao seu equilibrismo.

Essa frase («disse ela») é justaposta à fala da personagem porque lhe está intrinsecamente ligada, o que não acontece no exemplo apresentado pelo consulente.

Pergunta:

Tenho uma pequena dúvida relativamente a esta questão, que as perguntas no vosso arquivo não me esclareceram completamente.

Concordamos que podemos construir um discurso directo mais ou menos assim:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel. — O céu está muito escuro.

Por uma questão de coerência com as normas ortográficas (embora se conceda alguma liberdade de estilo em alguns casos), o ponto final do discurso do narrador encerra também a primeira afirmação do diálogo, começando a fala do narrador em minúsculas.

Mas veja-se este caso:

— Amanhã vai chover. — O Manuel voltou-se da janela para a sala. — O céu está muito escuro.

Ora, não temos aquele momento de explicação do diálogo pelo narrador (apontando o tom com que afirmou, se afirmou ou exclamou, se foi este ou outra personagem a falar…), mas uma informação contextualizadora diferente (neste caso, cinética), que complementa, mas que não comenta o acto do falante.

Assim sendo, a pontuação tal como assinalei está correcta, ou admite-se outra representação?

Em inglês parece muito comum esta situação, substituindo-se pelas aspas os nossos mais tradicionais sinais de pontuação do discurso directo, bem como a criação de núcleos de sentido, parágrafo a parágrafo, conjugando-se em cada um deles a fala de um personagem com o que o narrador tem a dizer sobre ele.

Obrigada.

Resposta:

A fim de responder à sua pergunta, convém começar por analisar o primeiro exemplo, que não oferece dúvidas. Convém também recordar as funções do travessão no diálogo, a saber:

(1) — Dois travessões, quando servem para intercalar uma frase (à semelhança do que acontece com as vírgulas ou os parênteses).

(2) — Um travessão, na mesma situação, mas no caso de a frase intercalada terminar o período.

(3) — Um travessão, como sinal de introdução do discurso directo.

O que se pretende é articular discurso directo com  indirecto. A fala da personagem é:

Amanhã vai chover. O céu está muito escuro.

A formulação apresentada pela consulente é a seguinte:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel. — O céu está muito escuro.

Neste exemplo, o primeiro travessão serve para introduzir a fala da personagem (3), e o segundo, para separar o que é fala da personagem do que é discurso do narrador. O primeiro ponto justifica-se porque termina o período (2). O terceiro travessão é de novo sinal de introdução do discurso directo e termina com a pontuação respectiva. Como o locutor é o mesmo, não há mudança de linha.

Note que, se as duas frases da personagem fossem separadas por vírgula e não por ponto («Amanhã vai chover, o céu está muito escuro»), a formulação do diálogo já seria:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel —, o céu está muito escuro.

A vírgula é colocada no fim da intercalação marcada pelos dois travessões e o resto da fala continua em minúsculas.

Os diá...

Pergunta:

Tenho a seguinte dúvida. Deve dizer-se «factos susceptíveis de constituir justa causa de despedimento», ou «factos susceptíveis de constituírem justa causa de despedimento»? De igual modo, «substâncias capazes de prejudicar a saúde», ou «substâncias capazes de prejudicarem a saúde»?

Muito obrigado.

Resposta:

Utiliza-se a forma não flexionada quando o infinitivo, «precedido da preposição de, serve de complemento nominal a adjectivos como fácil, possível, bom, raro e outros semelhantes» (cf. Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra).

É o caso dos exemplos apresentados pelo consulente, nos quais surgem os adjectivos capaz e susceptível, qualquer deles seguido da preposição de, que levam ao uso do infinitivo impessoal ou não flexionado:

«factos susceptíveis de constituir justa causa de despedimento»;

«substâncias capazes de prejudicar a saúde».

Note-se que nestas frases está omisso o verbo ser:

«(os) factos (são) susceptíveis de constituir justa causa de despedimento»;

«(as) substâncias (são) capazes de prejudicar a saúde».

Se substituirmos o sujeito da frase por um pronome pessoal, verificamos que a construção com o infinitivo não flexionado é a mais apropriada:

«Eles são susceptíveis de constituir justa causa…», «Nós somos susceptíveis de constituir…», «Elas são capazes de prejudicar a saúde», «Nós somos capazes de prejudicar…»

Construções como *«Nós somos susceptíveis de constituirmos…», *«Nós somos capazes de prejudicarmos…» tornam-se inaceitáveis.